A Coroação de Carlos III que ocorre hoje coincide com o 115.º aniversário da aclamação de D. Manuel II, último rei de Portugal até à data. Foi exactamente neste dia, em 1908, três meses depois do miserável assassinato do Rei Dom Carlos e do Príncipe Real Dom Luís Filipe no Terreiro do Paço, que o jovem rei se dirigiu ao palácio de São Bento para a cerimónia pública que simbolizava a comunhão entre o soberano e o seu povo, que o reconhecia como o primeiro entre iguais. Ao contrário do que acontece noutras monarquias, em Portugal, por tradição iniciada com Dom João IV, os reis deixaram de ser coroados, entregue que foi a coroa do reino de Portugal a Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa em agradecimento pela Restauração da Independência.
A solenidade da aclamação de 6 de Maio de 1908, profusamente fotografada e reportada pela imprensa da época, decorreu no hemiciclo de São Bento, perante os Deputados e Pares do Reino e do executivo liderado pelo Presidente do Conselho de Ministros Francisco Ferreira do Amaral. Dom Manuel jurou observar e fazer observar a constituição política da Nação portuguesa, promessa que cumpriu até à sua morte precoce, já no exílio em Twickenham. Teve um reinado trágico, shakespeariano.
Passados exactamente 115 anos sobre a aclamação do Patriota Desventuroso, hoje é dia de festa no Reino Unido. A coroação de Carlos III, numa cerimónia que extravasa as fronteiras dos seus Reinos e da própria Commonwealth, é um evento de âmbito global ecoará pelo mundo, em directo da Abadia de Westminster, numa Londres engalanada e disposta a viver uma gigantesca comemoração popular. É este o poder de atracção da monarquia britânica, cujo sentido de equilíbrio de um povo tão pragmático quanto zeloso da sua especificidade dignificou, fez permanecer e tornar um elemento harmónico e indispensável ao seu sistema democrático. Este vem resistindo aos mais turbulentos ventos do auto-proclamado progressismo e tem na Coroa um garante da coerência, do equilíbrio e do prestígio das instituições, simultaneamente vetustas e actualizadas, que compõem e asseguram a continuidade de uma das mais antigas democracias parlamentares do planeta. Esta democracia plural é profundamente participada, pujante e ruidosa, alicerçada numa sociedade civil dinâmica, exigente e até contestatária na defesa dos muitos interesses conflituantes, espelhados numa imprensa livre, independente e interpeladora, quantas vezes sensacionalista.
A cerimónia da Coroação, que irá mobilizar e animar o país durante três dias, contará com mais de 2 mil convidados. Entre eles, estarão chefes de Estado de vários países, políticos e representantes de outras monarquias e casas reais europeias, e contará com militares, funcionários públicos, líderes comunitários, filantropos, numerosos artistas e personalidades. O poeta e músico australiano Nick Cave participará na celebração. Segundo o próprio, a sua presença corresponde a um "apego inexplicável" à família real britânica. Este é o mistério das monarquias. Todo o planeta será testemunha deste acontecimento raro e precioso e que viverá na memória de quem o acompanhar.
Enquanto isso, em Portugal vive-se um clima de histeria insalubre que já transborda da bolha mediática para a rua e para as conversas de café: não há cigarros nem pipocas suficientes para acompanhar a deplorável telenovela que cola quase todos às televisões. O Chefe de Estado e o Governo nomeado há pouco mais de um ano encontram-se em conflito aberto, como já aconteceu, tristemente, tantas vezes nas últimas décadas. Bizarra república, a nossa, em que duas das principais instituições do Estado foram arquitectadas para se contraporem e digladiarem em guerrilha política, para regalo circense da turba. Não será essa uma das causas do nosso atraso socioeconómico, pobreza e desleixo?
Num país civilizado, a Câmara dos Deputados (dos Comuns, no Reino Unido) seria o espaço destinado ao confronto e ao conflito democrático, que é natural e desejável entre facções, podendo contar com a mediação duma Câmara Alta. Ah, e nesse país os tribunais funcionariam. Numa democracia avançada, com uma maioria parlamentar eleita há pouco mais de um ano, mesmo perante uma crise grave, o Governo ver-se-ia obrigado a corrigir os seus erros, e, estimulado pelos deputados que constituíssem o seu sustentáculo parlamentar, representantes verdadeiros dos seus eleitores, teria de regenerar-se e de trabalhar – veja-se o caso paradigmático do governo e da maioria conservadoras no Reino Unido: a sequência dos escândalos de Boris Johnson foi seguida da crise com a efémera Liz Truss, até à estabilização com Rishi Sunak.
O maior problema de Portugal é a fragilidade das suas instituições num sistema político de raiz revolucionária, estagnado, afunilado e absolutamente incapaz de se regenerar. Os portugueses, capturados pelo “progressismo” que assassinou os seus reis, destruiu as suas tradições e truncou o ensino da sua História, foram, há gerações, acometidos pelo conhecido Síndrome de Estocolmo (estado psicológico particular em que uma vítima de rapto, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo amor ou amizade pelo seu agressor) e parecem acomodados à mediocridade a que esta apagada e triste República os acorrentou.
Não gosto de unanimismos. Assim, foi pasmado que assisti ontem ao debate entre jornalistas na SIC Notícias sobre a inédita entrevista ao presidente da república. Um "debate" entre jornalistas tem, salvo raras excepções, o condão de exibir uma fastidiante consonância corporativa. Assim, nenhum dos convidados fez o mais pequeno esforço por disfarçar a sua antipatia "de classe" para com o personagem, sendo que os esgares de ressentimento de António José Teixeira pareceram-me até despudorados. Deste fenómeno de unanimidade, que se evidencia pelo menos desde que se começou a adivinhar a inevitável a reeleição de Cavaco, o que me aflige mesmo é a dificuldade dos jornalistas tirarem daí as devidas ilações: o modelo semipresidencialista remete-nos para uma mistificação a respeito dos poderes e isenção do cargo. Um mito benigno para os da sua facção, maligno para os seus detractores, trágico para a Nação. Ou seja, a falta de uma Chefia de Estado orgânica é bem mais grave quando o país se acerca do olho do furacão e carece como nunca dum sólido símbolo de unidade.
Esta terceira república está a bater no fundo e não apenas por razões de má gestão pública. Quer queiramos quer não, quer gostemos quer não.
O sistema instituído na Constituição Política de 1976, com algumas correcções posteriores em sucessivas revisões, já provou à saciedade que não serve. O semi-presidencialismo inventado pelos constituintes é um arremedo do constitucionalismo monárquico em que o rei reinava e não governava, detinha o poder moderador, era o árbitro acima dos partidos. Neste sistema republicano o presidente “presidencia” e não governa – embora ridiculamente se apresente com um programa que, por invadir a esfera do governo, se sabe que não pode cumprir -, exerce aquilo que diz ser a “magistratura de influência”, e não pode ser árbitro porque pertenceu, antes da sua eleição, a uma das equipas, quer ideológica quer partidária. Longe de contribuir para a estabilidade que, teoricamente, facilita e gera melhor governação, faz parte do conflito institucional, mais ou menos subterrâneo, mais ou menos visível. Na nossa terceira república com a agravante ainda de os presidentes eleitos, com excepção do primeiro, terem tido responsabilidades na área governativa e autárquica e trazerem para a chefia do Estado, para o bem e para o mal, a memória do que realizaram enquanto governantes e autarcas.
O semi-presidencialismo mitigado português, bebido na realidade francesa mas refreado nos poderes presidenciais em 1976, e mais ainda na revisão de 1982, pretendeu corrigir tanto os sistemas da primeira república, parlamentar com a deriva autoritária do efémero presidencialismo sidonista, como o da segunda república autoritária. Só que não quis entender que a verdadeira questão esteve desde sempre na chefia do Estado electiva: o presidente nunca pode ser um factor de equilíbrio entre poderes, quando o seu próprio poder constitucional tem a mesma origem, quer seja eleito pelos partidos no Parlamento, quer seja eleito por sufrágio directo com o apoio dos partidos.
A braços com uma crise económica que é, sem dúvida, a maior e mais grave dos cem anos do regime republicano – e não vale a pena culpar apenas ou sobretudo a conjuntura internacional – o país político vai-se entretendo com as eleições presidenciais que ocorrerão em Janeiro de 2011 mas que já se iniciaram na prática há um ano, com os candidatos a perfilarem-se para o sufrágio e a serem confrontados com a memória do passado, mais ou menos recente, a ser exposta na praça pública, porque quase todos têm ou tiveram responsabilidades na situação a que o país chegou. Nenhum está isento de responsabilidades, maiores ou menores.
Manuel Alegre, o primeiro a manifestar a vontade de se candidatar, foi desde 1974 deputado do Partido Socialista – com breve passagem por uma Secretaria de Estado – e apesar das suas discordâncias, nunca deixou de apoiar o seu partido e as suas políticas governativas. E sobre ele recaem ainda as suspeitas, fundamentadas ou não, de ter colaborado activamente com forças inimigas durante a guerra colonial, pondo em perigo a acção das Forças Armadas e a vida de muitos jovens militares nela participantes. É bom lembrar que o presidente da república é, também, o Comandante Supremo das Forças Armadas. É apoiado pelo PS e pelo BE.
Defensor Moura, também vindo da mesma área política, apoiou igualmente o partido que lhe possibilitou ser autarca e deputado. Tem escassos apoios na área socialista.
Fernando Nobre, que se diz da área ideológica da esquerda, nunca teve responsabilidades políticas, mas apesar de criticar muitos aspectos da acção dos vários governos, nunca quis assumir qualquer responsabilidade efectiva. O seu capital são as meritórias actividades humanitárias. O seu “handicap” o desconhecimento da gestão da coisa pública e a suspeita de ter trocado as simpatias monárquicas pela defesa da república por interesse. Não tem apoios partidários, mas curiosamente o de alguns monárquicos.
Cavaco Silva, presidente e recandidato, tem no seu passado o ter sido Ministro da AD e Primeiro-Ministro e o de ser um dos responsáveis pela situação do país, quer pela sua acção enquanto chefe do governo, quer pelo desempenho das funções presidenciais onde, a par da “colaboração estratégica” com o actual governo, criou situações de tensão com o mesmo governo em episódios lamentáveis como o da espionagem à Presidência da República pelo governo. É apoiado pelo PSD e pelo CDS.
Fica, assim, patente, que o Chefe do Estado que vai ser eleito será mais uma pessoa comprometida com o descalabro deste regime, comprometida com os partidos, ele mesmo parte de uma facção ideológica e política que, por milagre laico e republicano, se quererá converter em “presidente de todos os portugueses”.
A terceira república - cuja principal virtude foi restaurar a democracia caída em 1910 - que se quis redentora dos erros das anteriores, ao prosseguir com o seu principal erro – a chefia do Estado electiva que nunca pode ser independente e supra-partidária, mas está comprometida com o passado e o presente da gestão do Estado, por acção ou omissão – está condenada a termo. E talvez esse termo seja menos longo do que muitos julgam.
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