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BLOGUE REAL ASSOCIAÇÃO DE LISBOA

Uma nova cruzada nacional

(Igreja de São Vicente de Fora, 1 de Fevereiro de 2024)

Regicidio 24.jpg

Homilia na Missa por S. M. F. El-Rei D. Carlos I e pelo Príncipe Real D. Luís Filipe

  1. Introdução e cumprimentos. Na primeira leitura da liturgia da palavra desta quinta-feira da quarta semana do tempo comum, o Rei David, na iminência da sua morte, faz as suas últimas recomendações a seu filho Salomão, que lhe sucederia no trono de Israel.

A circunstância de hoje a Palavra de Deus nos falar de um monarca e do seu filho e herdeiro no trono real, não é certamente fortuita, mas providencial, pois convém perfeitamente a esta celebração, no aniversário do atentado em que pereceram Sua Majestade Fidelíssima El-Rei D. Carlos I e o seu filho primogénito, Dom Luís Filipe, o Príncipe Real. É ante a memória de ambos que agora nos curvamos, em homenagem ao seu sacrifício por Portugal, sufragando as suas almas, mas solicitando também a sua intercessão pelo País por que derramaram o seu sangue e, em especial, pela Família Real, que os representa e nos honra com a sua presença nesta comemoração. 

Antes de prosseguir, permitam-me que em meu nome e no de toda esta assembleia, cumprimente Suas Altezas Reais, os Senhores Duques de Bragança, bem como o Senhor Príncipe da Beira e demais membros da Família Real. Uma palavra de agradecimento ao Presidente da Real Associação de Lisboa, pelo reiterado convite para presidir a esta celebração, e à Causa Real, aqui representada pelo Secretário da sua Direcção. É da praxe saudar também as delegações das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Santa Isabel, bem como da Soberana e Militar Ordem de São João, dita de Malta, e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém. Também cumprimento os membros das Ordens Constantinianas de São Jorge. A todos os Cavaleiros e Damas agradeço a piedosa presença neste acto, bem como aos restantes fiéis. Unidos pela fé que todos professamos e irmanados pelo amor à Pátria, na saudosa lembrança do penúltimo Rei de Portugal e do Príncipe Real, recordamos igualmente a Rainha Dona Amélia e El-Rei D. Manuel II, de tão grata memória. 

  1. O mistério da morte, à luz da fé. Para nós, cristãos, a morte não existe: “Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos” (Lc 20, 38). A morte mais não é do que a transição, a porta, passagem, ou páscoa, entre o aquém e o além, a vida no tempo e no espaço e a existência na eternidade. Os que morreram na graça de Deus, transitaram para a glória da bem-aventurança eterna e, portanto, já não carecem dos nossos sufrágios. Os que infelizmente se condenaram, não podem beneficiar das nossas orações, nem interceder por nós, mas os que morreram arrependidos, mesmo que com pecados leves, ou veniais, podem aproveitar as nossas orações e as indulgências que a Igreja oferece pelos fiéis defuntos. 

Queremos crer que as pessoas reais que foram vítimas do regicídio, já não precisam das nossas orações, porque o supremo sacrifício das suas vidas foi decerto suficiente expiação de todas as suas faltas. Mas talvez os regicidas, mesmo que arrependidos do hediondo crime tão cobardemente cometido, precisem das nossas súplicas, como todos nós precisamos também, insistentemente, da misericórdia de Deus, como amiúde nos recorda o Papa Francisco. Na oração que o Senhor nos ensinou, pedimos recorrentemente: “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós também perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6, 12). Que Deus tenha piedade das suas almas e lhes conceda, pela sua infinita misericórdia, o perdão de que carecem. A História não os pode absolver da terrível culpa contraída no regicídio, mas Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Senhor da História, também por eles intercedeu quando, do alto da Cruz, rezou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). 

  1. Uma crise moral. “Ao aproximar-se o dia da sua morte, David ordenou a seu filho Salomão: ‘Vou seguir o caminho de todos os mortais. Tem coragem e procede como um homem. Guarda os mandamentos do Senhor, teu Deus. Segue os seus caminhos, cumprindo os seus preceitos, estatutos, normas e decretos, conforme está escrito na Lei de Moisés” (1Rs 2, 1-3).

Na iminência da partida do Rei David, os seus conselhos não são de índole política, nem versam sobre questões económicas. Não tem receitas mágicas sobre como o filho deve exercer o poder, nem lhe oferece fórmulas técnicas que assegurem a prosperidade de Israel. De que versa, então, o seu testamento? Apenas e só de exigências éticas, porque a principal virtude do governante há-de ser a sua exemplaridade moral. 

Um tal programa não peca por ingénuo porque, se Salomão assim proceder, será bem-sucedido em todas as suas obras e empreendimentos e o Senhor cumprirá a promessa que fez a seu pai, o Rei David: “se os teus filhos procederem bem e caminharem fielmente na minha presença, com todo o coração e toda a alma, nunca te faltará um descendente no trono de Israel” (2Rs 2, 4). 

Muito se tem falado e escrito sobre a crise política que vive o nosso país, neste momento da sua História. São notórias as graves deficiências do Estado social, sobretudo no que se refere à Saúde, à Educação e à Justiça. Mas o principal déficit da nossa sociedade, meio século decorrido sobre o golpe de Estado que pôs termo ao Estado Novo, é, na realidade, de ordem moral. Com efeito, na génese desta crise política, que levou à dissolução do Parlamento e à queda do Governo, está um escândalo originado por comportamentos éticos reprováveis. Estes factos atingiram não apenas os principais titulares dos cargos executivos, agora demissionários, mas também a honorabilidade do próprio regime, de que a corrupção parece ser a regra e a conduta impoluta, a honrosa e cada vez mais rara excepção. 

Os romanos distinguiam, com sábia intuição, a potestas da auctoritas: enquanto o poder é o exercício das competências inerentes ao cargo, a autoridade é a estatura moral do seu titular. Se o poder dimana da organização política e administrativa do Estado, a autoridade decorre da elevação ética de quem, com o seu exemplo, se impõe como uma referência moral. O tirano exerce o poder de que está investido, mas só tem verdadeira autoridade aquele que, pelo seu saber e exemplo ético, se impõe como modelo. 

  1. Uma nova cruzada. Portugal precisa de uma nova cruzada moral, um movimento nacional que devolva ao nosso país a dignidade perdida. 

O regime político anterior ao 5 de Outubro de 1910 não era perfeito, como nenhum o pode ser, porque todos são humanos e falíveis. Mas tinha, na pessoa do Rei, uma referência de integridade moral e de espírito de serviço à causa nacional. O monarca unia, na sua real pessoa, o poder institucional e a autoridade decorrente da sua exemplaridade moral, sobretudo no desempenho do seu poder de moderação. Ante a voragem dos políticos, por vezes mais interessados em se servirem da causa pública do que servirem o interesse nacional, el-Rei D. Carlos foi um exemplo de dedicação sacrificada e de desprendimento de qualquer interesse pessoal. Não tinha outro propósito que não fosse servir Portugal, tanto no plano interno como no da sua representação internacional, onde o nosso penúltimo monarca granjeou um merecido prestígio.        

Não há modelos políticos ideais, mas há melhores e piores soluções. Seria impróprio de uma homilia fazer juízos de natureza política, mas há dados éticos objectivos, que podem ser aqui invocados, sem perigo de incorrer numa escandalosa politização de uma função sagrada. 

  1. A exemplaridade cristã da nossa Família Real. Logo na sua primeira dinastia, a nossa História celebra três Infantas, filhas de el-Rei D. Sancho I, que alcançaram a bem-aventurança celestial: as Beatas Teresa, Sancha e Mafalda. É também figura cimeira dessa etapa fundacional, a nossa Rainha Santa Isabel que, embora de naturalidade aragonesa, foi portuguesa pelo seu casamento: foi, de facto, em Portugal que foi Rainha e Santa, ‘mais Rainha, porque Santa e mais Santa, porque Rainha’, no inspirado dizer do nosso excelente Padre António Vieira. 

Foi também um santo que esteve na origem da dinastia de Aviz: embora D. Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, não fosse membro da Casa Real, pelo casamento da sua única filha, com o primeiro Duque de Bragança, é origem desta Casa ducal que, desde 1640, é também a nossa Casa Real. Igualmente merece especial menção o chamado Infante Santo, que o não foi oficialmente, mas sim na voz do povo, que alguns dizem ser também voz de Deus. Desta segunda dinastia, como não lembrar ainda a nossa Santa Joana Princesa, a Infanta que a cidade de Aveiro tanto se orgulha em ter por principal padroeira?! Ela é mais um sinal do elevado padrão ético que, desde sempre, foi timbre da Casa Real portuguesa. 

Com a restauração da independência nacional, que em termos jurídicos formais nunca se tinha perdido, pelo facto da união das duas principais coroas ibéricas ser apenas pessoal, o então Duque de Bragança, D. João, que foi o quarto Rei do seu nome, não apenas consagrou o reino a Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, vizinha do seu paço ducal, como na sua virginal e imaculada fronte cingiu a coroa real que, desde então, os Reis de Portugal não mais usaram. A D. Maria I, dita a piedosa, se ficou a dever a magnífica Basílica da Estrela, onde jaz, e que é a primeira igreja no mundo dedicada ao Sagrado Coração de Jesus, quando esta devoção era ainda inédita no culto católico. 

É nesta gloriosa tradição que se inscrevem também os nomes de el-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe. Não foram mártires, no sentido teológico do termo, mas decerto que o seu sacrifício não foi alheio à sua fé católica. Eles cumpriram a profecia que também se aplicou a Nosso Senhor Jesus Cristo, quando d’Ele Caifás disse que convinha que um homem morresse pelo bem de todo o povo (cf. Jo 18, 14). Neles se realizou plenamente a condição que afere a maior caridade, pois “não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos” (Jo 14, 13). É verdade que foram vítimas de um vil atentado, mas também o foi o nosso Mestre e Senhor que, não obstante, pôde dizer de si mesmo, a propósito do bom pastor: “Se o Pai me ama, é porque dou a minha vida para outra vez a assumir. Ninguém ma tira, mas eu por mim próprio a dou, e tenho poder de a dar e de a reassumir” (Jo 10, 17-18). 

  1. Exemplos de santidade em outras Casas Reais. Esta estreita relação entre a monarquia lusa e a santidade cristã tem paralelo em outras Casas Reais: os castelhanos celebram o Rei São Fernando; os franceses comemoram o seu São Luís; na Escócia, é venerada a Rainha Santa Margarida; enquanto que, na Inglaterra, se presta culto a São Eduardo, o confessor. 

Caso especial é do reino apostólico da Hungria, fundado por Santo Estêvão, cujo filho, Emérico ou Américo, foi também canonizado. Desta linhagem real são também São Ladislau, que foi pai de Santa Irene, Imperatriz de Constantinopla pelo seu casamento com João II e, ainda, as quatro filhas santas do Rei Bela IV da Hungria: as Santas Margarida e Cunegunda e as Beatas Iolanda e Constança. Delas foi tia paterna Santa Isabel da Hungria, tia-avó da nossa homónima Rainha Santa. Também descendem desta Família Real a Beata Isabel de Toss, princesa herdeira do trono magiar e, por via materna, Santa Inês da Boémia. Em total, são portanto doze os membros da Casa Real húngara, desde a sua fundação até meados do século XIV, que foram beatificados ou canonizados! 

Não se pense, no entanto, que esta gloriosa tradição é, apenas, do passado: não só foi já beatificado Carlos I, o último Imperador de Áustria e Rei da Hungria, como também a Imperatriz Zita está a caminho dos altares. Dois bem-aventurados que nos são particularmente próximos, não apenas pelo facto do último Imperador ter nascido para a vida eterna em Portugal insular, mais concretamente na ilha da Madeira, onde jaz, mas também porque ambos tinham um muito próximo parentesco com a nossa Família Real. 

Também está em curso o processo de beatificação e de canonização do Rei Balduíno da Bélgica, que se recusou a promulgar a lei que, no seu país, legalizou o aborto. Também este saudoso monarca estava aparentado com a nossa Família Real: seu avô paterno, o Rei Alberto I, foi casado com a Rainha Elizabeth, que nasceu Duquesa na Baviera e que era filha da Infanta D. Maria José, filha de el-Rei D. Miguel I. 

Apesar de muitos dos países ditos católicos europeus serem hoje repúblicas, não se conhece, que eu saiba, nenhum presidente que tenha sido beatificado ou canonizado, embora os tenha havido já em grande número, até porque os monarcas tendem a ser vitalícios, enquanto os mandatos presidenciais são de mais breve duração. Talvez haja mais factores a ter em conta nesta comparação, mas esta diferença parece indiciar uma superioridade moral do regime em que, de facto, ocorreram tantas vidas santas. Pelo contrário, os sistemas que se afirmam orgulhosamente laicos, como o que nos rege desde 1910, são também, por regra, os que apresentam mais casos de corrupção. 

  1. Conclusão. Aflito com a responsabilidade do trono real, o jovem príncipe Salomão assim rezou ao Senhor: “Concede-me pois, a sabedoria e o conhecimento, a fim de que eu saiba conduzir este povo (…). Deus disse a Salomão: ‘Já que é esse o desejo do teu coração e não pediste riquezas, nem tesouros, nem glória, nem a morte dos teus inimigos, nem uma vida longa, antes pediste sabedoria e conhecimento, a fim de governar o meu povo, do qual te fiz rei, concedo-te sabedoria e conhecimento; além disso, dar-te-ei também riquezas, tesouros e glórias tais como jamais tiveram os reis antes ou depois de ti.” (Cr 1, 10-12). 

Ao Senhor agradou sobremaneira esta petição do jovem príncipe, como a Deus agradará também que hoje peçamos que a sabedoria, feita vida de fé e serviço a Portugal, continue a ser um atributo da Casa Real que, não em vão, é fidelíssima. O Senhor Príncipe da Beira tem em seus augustos Pais a melhor escola destas virtudes, e tem também, no exemplo egrégio de el-Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe, a mais eloquente lição do que se pede ao futuro Chefe da Casa Real Portuguesa e, como tal, herdeiro e representante de todos os Reis de Portugal. 

Ao terminar este sermão, peço ao celebrado poeta de Os Lusíadas, nos quinhentos anos do seu nascimento, que supra com a sua graça a minha falta de “saber, engenho e arte”. Dele cito, pois, esta oração final: “Doutos varões darão razões subidas,/ Mas são experiências mais provadas,/ E por isso é melhor ter muito visto./Cousas há i que passam sem ser cridas/ E cousas cridas há sem ser passadas,/ Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.”  Assim seja!

Gonçalo Portocarrero de Almada

Compreender o regicídio

Daniel Santos Sousa

 

Quando Portugal teve 3 Reis em apenas 1 dia | VortexMag

1- Nas origens da tragédia


O regicídio cultiva nas diferentes fileiras políticas um misto de simpatia e de desprezo, de romantismo e de horror. Assim como na morte de Luís XVI, em França, de Nicolau II, na Rússia, ou  a morte do rei mártir Carlos I, em Inglaterra, não há tragédia que não venha antecedida de uma circunstância, entretecida por motivos e ideais programados à inteligência dos homens. Compreender um crime não é um acto de compaixão, mas de justiça, por mais complexo, arbitrário, obscuro, que nos possa parecer.

Aquilino Ribeiro tece um retrato apaixonado dos regicidas, ele próprio um cúmplice. No livro “Um escritor confessa-se” a descrição mede o rancor e o desprezo com que olhava o regime; ali traça a espera justicialista da redenção pelo crime, do sangue pela virtude. Aquilino escreve: “o regicídio foi a enfloração lógica de ideias, ódios e revoltas, semeados a trouxe-mouxe por monárquicos e republicanos num solo bárbaro, propício à violência”.

Independentemente do contexto a reflexão parece lapidar e soma as várias circunstâncias que altivaram a catástrofe. O século XIX é bárbaro e inclemente numa sinecura de traições e cobardias. A guerra civil dilacerara as consciências, onde apenas poderia restar o divisionismo e o sectarismo partidário. As inteligências não progrediram dessa angústia, restando a evolução dum sistema parlamentar e rotativo muitas vezes olhado com desdém. Ainda que as obras de melhoramentos materiais, as grandes reformas codificadoras, a transformação político-administrativa perpetrada pelo regime tenha mudado Portugal. Acuse-se o facto de o constitucionalismo ter sido imposto de cima para baixo, muitas vezes confrontando a desconfianças do povo e a incompreensão do “país legal” face ao “país real”. O trono fora poupado, mas as forças que avançavam faziam antever o pior. Fialho de Almeida constatava: “Ah, os tempos mudaram! Já não são os reis que fazem os povos”[1].

2 – O radicalismo na monarquia

A maçonaria radicalizava-se no ano de 1907 com a eleição, para grão-mestre, de Magalhães Lima, nele, o discurso contra o trono e o anticlericalismo eram constantes. A carbonária portuguesa, copiada da italiana de onde tem origem, era verdadeiramente uma milícia armada, como comprovam os testemunhos da época. Os populares acorriam à seita e mesmo os próprios republicanos ficaram incrédulos perante uma lista de carbonários apresentada por Antonio José de Almeida. Treinavam o tiro e incentivavam o ódio ao regime, ódio ao Rei sobretudo, e estavam prontos a matar e a morrer por aquela causa.

Como notava um jornalista republicano, Homem Cristo, a antipatia a D. Carlos resultava “unicamente da forte personalidade que, desde príncipe real, D. Carlos revelara…” e como o povo de Lisboa “sentia, por instinto, no futuro reinante, um adversário.” [2] . Outro, Júlio Vilhena, diria que, D. Carlos fora morto, “não pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades”.

Dentro do regime os ânimos acicatavam ódios antevendo o pior. José Apolim, chefe do Partido Regenerador, tivera atitudes desprezíveis e odiosas face a D. Carlos, levando o jornalista republicano Pinheiro Chagas a cognominar esse político como “o regicida”. Constata-se, assim, no seio da própria monarquia, uma vacuidade total para defender o trono. Quanto aos que podiam defender o Rei, esses iam desaparecendo, primeiro Fontes, o líder regenerador, depois Braancamp, líder progressista, mais tarde Hintze Ribeiro, dedicado conselheiro do Rei, que morreria decepcionado por ter sido preterido por João Franco. Desapaixonadamente, D. Carlos confessaria: “Isto é uma monarquia sem monárquicos”.

3 – Um rei entre tragédias

D. Carlos teve grandes êxitos na política colonial, e, ao mesmo tempo, uma grande derrota que foi o Ultimatum Britânico. Teve consciência dos vícios que corroíam o poder e conhecia bem os desígnios da autoridade, suficientemente consciencioso para ser um realista político e perceber a enfermidade de que vivia o regime [3]. Bonacheirão e marialva, bon vivant, verdadeira têmpera aristocrática, tinha ao mesmo tempo o sangue vivo dos Sabóia. Pela têmpera jamais se deixaria desrespeitar, podia ser clemente e rígido, autoritário e impávido, ao mesmo tempo, mas nunca cobarde e jamais recuaria face ao perigo. Mas também um activo estudioso de oceanografia, pintor exímio e homem de estado audacioso e determinante [4].

O rei resistiu à primeira tentativa de golpe republicano no Porto, a 31 de Janeiro de 1891, ali demonstrou que não deixaria ser derrubado. A desordem não ficou por aqui. Em 1906, a tripulação a bordo do cruzador “D. Carlos” amotinou-se, obra de uma sociedade secreta, segundo se apurou, com sangue frio resiste a todas as crises e apercebe-se da insustentável fragilidade do regime. Procurou assim combater a decadência do sistema através de uma "revolução de topo" (conforme propugnara Hegel) e que encontrara expressão, no fim de século, pela  pena de Oliveira Martins no programa da "Vida Nova". Desaparecido na decepção profunda em que mergulhava o país restou a D. Carlos confrontar-se com as exigências de um tempo que parecia ameaçar todas as instituições. João Fraco seria, pois, o último  baluarte face ao avanço da desordem. Sobre o ministro recaíram todas as antipatias e respeitos (conforme se interpretem as suas decisões e conforme se estudem as suas medidas políticas). Não há como concordar na atitude do Rei face à certeza de que nem progressistas nem regeneradores conseguiam governar com o Parlamento.

Sobre a “ditadura” franquista, uma geração de historiadores republicanos, e mais tarde de historiadores marxistas, fez a confusão mais espúria ao ver Franco como uma antecipação do salazarismo (o que não é verdade [5]). João Franco era um liberal, um homem do sistema que compreendia a fragilidade do regime, o que protagonizava não se afastava dos modelos a que a restante Europa propugnava: um regime que mantivesse a liberdade e garantisse a ordem. Tal como Bismarck, na Alemanha, ou Disraeli, na Inglaterra, procurava as medidas necessárias para reformar o sistema. Este tipo de “ditadura” era comum nos sistemas liberais: o rei dissolvida o parlamento e nomeava um chefe do governo com o qual elaboraria decretos que seriam aprovados quando o parlamento reabrisse [6].

A ditadura servia como última consequência do demo-liberalismo, no fundo uma “ditadura administrativa” que mais não agoirou do que em ódios fervorosos tanto dos monárquicos, como dos republicanos, numa crescente de ataques que iam desde vaias ao rei a críticas ferozes a João Franco.

4 – A desordem

Seria fácil acusar apenas o grupo, não muito significativo, de republicanos pelas críticas e conspirações, ou ver na carbonária o braço armado que levou ao assassinato, ou ainda tecer injúrias a Buiça e a Costa. Acontece que os próprios políticos dos partidos monárquicos estavam de conluio no ódio ao Rei alimentados pelo apoio que dava a João Franco, a priori, este seria o homem a abater.

A primeira conspiração correu mal, a 28 de Janeiro de 1908. A ideia era raptar João Franco, o que falhou; enquanto outros que ficaram de invadir a Câmara Municipal foram denunciados e perseguidos. Percebiam-se os ataques à ditadura de João Franco e era necessário que não houvesse tréguas. Procurou-se que o rei soubesse os motivos da revolta e assinasse um decreto onde permitiria que deportassem para o desterro no ultramar os chefes republicanos. O rei assinou, declarando: “Assino a minha sentença de morte”.

 A 1 de Fevereiro quando o rei e a família real desembarcaram no Terreiro do Paço veio a catástrofe. Embora se tenha justificado que o Rei e o filho foram mortos porque os conjurados não encontraram João Franco, o facto é que havia entre os revolucionários quem entendesse ser necessário “abater” o Rei. O tiro que matou D.Carlos foi desferido por Buiça, um professor primário; o outro tiro, que abateu um jovem príncipe de vinte anos, foi desferido por Costa, um caixeiro duma loja de Lisboa. Ambos carbonários, homens idealistas e fanáticos.

A descrição de Aquilino surpreende num homem que a cultura lusa tem por sumidade, demonstra como até as mentes mais esclarecidas conseguem ficar entupidas de fanatismo. A sua critica à monarquia é básica e as suas observações rudimentares, não superam a fragilidade da coscuvilhice e do mal-dizer, não tem argumentos sólidos, mas a forma como escreve e o que o motiva a escrever, é talvez determinante para chegar à mente dos regicidas e da percepção que estes tiveram naquele segundo em que premiram o gatilho.

Ele escreve: “A geração a que pertenço nasceu revolucionária, as gerações que alvoreceram depois de mim revolucionárias perduram.” Era talvez uma verdade mais romântica do que realista, mas é a partir desta declaração que percebemos muitas das contradições de um tempo que ansiava por uma nova alvorada, de utopia e de sonho, de revolução e de morte, de sangue e de martírio.

O século XX português começa então em 1908, num Portugal já sem grandes certezas da sua missão histórica, pessimista quanto ao futuro, dividido em facções políticas entre ambições e desalentos que gerariam as crises das próximas décadas.
_____________________________
[1] PABON, Jesus, A Revolução Portuguesa, colecção Grandes Estudos Históricos 1959.
[2] CRISTO, Homem, Notas, IV, Lisboa,
[3] RAMOS, Rui, D. Carlos, Coleccção Reis de Portugal, Vol.XXXIII
[4] Idem
[5]RAMOS, Rui, João Franco: uma educação liberal (1884-1897) Análise Social, vol.xxxvi (160), 2001, 735-766, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
[6] RAMOS, Rui, …

Daniel Santos Sousa

A Real Associação de Lisboa é uma estrutura regional integrante da Causa Real, o movimento monárquico de âmbito nacional. Esta é uma associação que visa a divulgação, promoção e defesa da monarquia e da Instituição Real corporizada na Coroa Portuguesa, cujos direitos dinásticos estão na pessoa do Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança e em quem legitimamente lhe vier a suceder. Cabe a esta associação a prossecução de iniciativas e de projectos de interesse cultural, social, assistencial e de solidariedade que visem a dignificação, a valorização e o desenvolvimento dos seus associados e da comunidade em que se insere.

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