Espírito de Serviço e de Missão
(Lisboa, Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-2025)
Homilia na Missa de sufrágio por Sua Majestade Fidelíssima el-Rei D. Carlos e pelo Príncipe Real, D. Luís Filipe
- Introdução. “Quando os pais de Jesus trouxeram o Menino para cumprirem as prescrições da Lei no que lhes dizia respeito, Simeão recebeu-O em seus braços e bendisse a Deus, exclamando: ‘Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao alcance de todos os povos: luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo’.” (Lc 2, 22.28-32).
As palavras de Simeão, “homem justo e piedoso que esperava a consolação de Israel” (Lc 2, 25) introduzem o episódio bíblico da apresentação de Jesus no templo, que se celebra todos os anos, no dia 2 de Fevereiro. Por uma feliz coincidência, esta celebração vespertina coincide com a Missa de sufrágio por el-Rei D. Carlos I e pelo Príncipe Real D. Luís Filipe que, no primeiro de Fevereiro de 1908, deram a sua vida por Portugal.
No aniversário do regicídio é um piedoso costume que Sua Alteza Real, o Duque de Bragança, na sua qualidade de Chefe da Casa Real portuguesa, mande celebrar uma solene eucaristia, não apenas pelas almas das reais vítimas desse atentado, mas também por Suas Majestades as Rainhas D. Maria Pia e D. Amélia, bem como pelo eterno descanso de el-Rei D. Manuel II. Que esta celebração tenha lugar neste magnífico templo explica-se pela contiguidade do Panteão Real, onde depois se rezará um responso pelas almas das pessoas reais aí sepultadas.
Agradeço a presença de todos os fiéis, nomeadamente os Cavaleiros e Damas da Soberana Ordem Militar de São João, também dita de Malta, e da pontifícia Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém, bem como os representantes das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Santa Isabel. Cumprimento ainda os membros presentes de outras Ordens honoríficas, o Secretário-Geral da Causa Real, o Presidente da Real Associação de Lisboa, a quem devo o amável convite para presidir a esta celebração, e o representante da Juventude Monárquica.
Saúdo também os restantes fiéis, esclarecendo que esta celebração, não obstante o significado histórico da data que evoca, não é de natureza política, mas exclusivamente espiritual, ou seja, de sufrágio pelas reais vítimas do regicídio.
Quando Jesus ensinou os seus discípulos a rezar, disse-lhes que, na sua súplica ao Pai, deviam interceder pelos seus inimigos, para poderem também obter a graça do perdão dos seus pecados. Por isso, na oração que o Senhor nos ensinou, dizemos: “perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Lc 11, 1-4). Imitando o Mestre quando, no alto da Cruz, pediu ao Pai que perdoasse os seus algozes, que desculpou dizendo que não sabiam o que faziam (Lc 23, 34), rezaremos também pelos que, atentando contra a vida do Rei e do Príncipe Real, feriram os nossos mais cristãos e patrióticos sentimentos. Também as suas almas carecem dos nossos sufrágios, na esperança de que a graça do arrependimento final lhes tenha permitido aceder à bem-aventurança celestial.
- Ano Jubilar. Para além da feliz coincidência de, neste ano, a Missa de sufrágio pelo Senhor Dom Carlos e pelo Príncipe Real ser também a celebração dominical vespertina da festa da Apresentação do Senhor, há a referir mais uma jubilosa ocorrência, qual é a de nos encontrarmos a viver, por felicíssima decisão do Papa Francisco, um Ano Santo, ou seja, um tempo de especial graça.
Com a proclamação do Ano Jubilar, o Santo Padre a todos convida à prática sacramental da penitência, para assim beneficiarmos do amor misericordioso de Deus. Com efeito, feita a confissão contrita e completa das nossas faltas, Deus concede-nos, por intermédio do confessor, a absolvição sacramental, ou seja, a graça do seu perdão. Embora este sacramento elimine a culpa, bem como a pena eterna devida pelos pecados graves já confessados, não necessariamente extingue a pena temporal por eles devida e que pode ser remida, em parte ou totalmente, pelas indulgências parciais e plenárias, respectivamente. Neste Ano Santo, qualquer fiel pode mais facilmente lucrar, para si próprio ou para um fiel defunto, a graça da remissão da pena a expiar no Purgatório. Aproveitemos, pois, esta ‘porta santa’ que agora se nos abriu para o Céu e renovemos o propósito de tudo fazer para alcançar a glória, procurando que também os nossos familiares, colegas e amigos beneficiem dos tesouros de graça que, neste Ano Santo jubilar, mais copiosamente se nos oferecem.
- O paradoxo da Cruz. A feliz circunstância de nos encontrarmos num Ano Santo nos enche de alegria, mas a penosa lembrança que aqui nos congrega evoca, necessariamente, um terrível crime, que parece contradizer o júbilo próprio deste especial tempo de graça.
É verdade que o carácter jubiloso deste Ano Santo contrasta com o luto pela morte das reais pessoas, mas não são sentimentos contraditórios, pelo menos à luz da fé cristã. A visão meramente humana não é capaz de ir além do que é imediato e, nesse sentido, repudia o sofrimento e regozija-se com o prazer. A perspectiva da fé ultrapassa esse imediatismo, porque foi pela Cruz que Deus redimiu o mundo. Este é, com efeito, o paradoxo da nossa fé: o maior crime jamais acontecido, como foi a morte cruenta de Jesus Cristo, foi também a maior bênção dada à humanidade! Com efeito, no sacrifício redentor do Filho, o homem pecador obteve a graça da sua salvação e, pela efusão do Espírito Santo, conheceu o amor misericordioso do Pai!
São Paulo, na sua carta aos romanos, expressa em termos admiráveis este são optimismo, que é, afinal, o realismo da fé: “eu estou certo que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem as virtudes. Nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos manifesta em Jesus Cristo Nosso Senhor” (Rm 8, 38-39).
Aprendamos, pois, a ler a nossa História nacional, mas também a universal e a pessoal, à luz da teologia da cruz, sabendo que, mesmo o que aparenta ser uma desgraça pode ser também uma graça de Deus. E já que sobre graças e desgraças decorre o sermão, permitam-me que recorde que, terminada a Segunda Guerra Mundial, Churchill, o estadista a quem se ficou a dever a vitória dos aliados, perdeu as eleições legislativas na Grã-Bretanha. Ante uma tão ingrata atitude dos seus compatriotas, Sir Winston ficou compreensivelmente abatido. Sua mulher, querendo-o animar, disse-lhe então que, numa aparente desgraça está sempre escondida uma graça de Deus, ao que o marido, com o seu típico humor inglês, replicou: ‘Pois olha que esta graça está muito bem escondida!’ Mais tarde, viria a reconhecer quanta sabedoria cristã havia nas consoladoras palavras da sua mulher porque, apeado do poder, o ex-primeiro-ministro dedicou-se a escrever a história da Segunda Grande Guerra, pela qual ganhou o Prémio Nobel da literatura que, decerto, não lhe teria sido concedido se tivesse continuado à frente do Governo de Sua Majestade britânica!
Talvez nem sempre nos seja dado ver o que de bom há nas situações mais adversas, mas, nesses casos, alcance a nossa fé o que não vislumbra a nossa razão, numa aceitação filial da santíssima Vontade de Deus.
- Os caminhos da Providência de Deus. São Lucas relata que “ao chegarem os dias da purificação, segundo a lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, para O apresentarem ao Senhor, como está escrito na lei do Senhor” (Lc 2, 22-23).
É por ocasião da purificação legal de Maria que, por ser já então “cheia de graça” (Lc 1, 28), dela não carecia, mas a que se quis sujeitar, para nos servir de exemplo de humildade e de obediência à Lei de Deus, que surge Simeão, “homem justo e piedoso que esperava a consolação de Israel”, a quem o Espírito Santo revelara “que não morreria sem antes ver o Messias do Senhor” (Lc 2, 25-26). A sua presença no templo, no exacto momento em que “Maria e José levaram Jesus a Jerusalém para O apresentarem ao Senhor” só pode ter sido, como é óbvio, providencial, como providencial foi também que, então, profetizasse a Maria que o seu Filho “foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição” e, ainda, que uma espada trespassaria o seu imaculado coração (Lc 2, 34-35), porque a lança que já não pôde ferir o corpo morto de Jesus, trespassou, sem dúvida, o coração doloroso de sua Mãe, que estava junto à sua Cruz (Jo 19, 25).
Para além das vítimas principais do regicídio, el-Rei D. Carlos e o Príncipe Dom Luís Filipe, importa não esquecer que também o foram, de certo modo, as Rainhas D. Maria Pia, que nele perdeu seu filho e neto primogénitos, e D. Amélia, que também sofreu a perda de um filho e a de seu marido. Se nos indigna a cobardia dos assassinos, que nem sequer se atreveram a enfrentar as vítimas, que abateram cobardemente, também nos orgulha o heroísmo do Príncipe Real, que foi o primeiro a erguer-se para defender o seu augusto Pai, dando pelo Rei a sua tão promissora vida, bem como o da Rainha Dona Amélia que, erguendo-se, se expôs valerosamente às balas, numa desesperada tentativa de defender el-Rei D. Carlos e os príncipes seus filhos. O Rei e o Príncipe herdeiro foram mortos, mas morreram como heróis, enriquecendo a glória da sua Família e a de Portugal, com o mesmo sangue que mancha a memória dos seus traiçoeiros assassinos, bem como o regime implantado à custa de um tão hediondo crime.
Outras duas personagens que intervieram valerosamente nessa ocasião caíram, contudo, no esquecimento, não obstante ambas terem sido também baleadas pelo principal regicida, que foi o autor material do assassinato de el-Rei e do Príncipe Real. Trata-se de dois militares que, naquela hora trágica, reagiram com a valentia que se espera de um verdadeiro português: o soldado Henrique Alves da Silva Valente, que o não era só de nome, e o Tenente Francisco de Paula Figueira Freire da Câmara que, como estava de serviço como oficial às ordens do Rei, acompanhava, a cavalo, o landau real. Não obstante a sua diferente condição social, ambos souberam defender o seu Rei, como se o povo e a nobreza, que representavam pelas suas respectivas proveniências, neles se unissem para prestar um derradeiro testemunho de lealdade à Pátria e à Família Real.
Lê-se num recente estudo sobre o regicídio que, logo depois de disparados os tiros que vitimaram o Rei e o Príncipe Real, “um soldado de apelido Valente cai sobre Buíça, que lhe desfere um tiro sobre a coxa esquerda (…). O oficial às ordens de sua Majestade, Tenente Figueira Freire, desembainha o sabre, acutila Costa, já caído por terra, e como um relâmpago cai sobre Buíça. Reage o assassino e uma vez mais, calmamente, vendo-se acossado pelo oficial, pára e dispara, atingindo-o na coxa direita. Aos gritos de ‘assassino’, Figueira Freire atravessa Buíça com o sabre, à altura dos rins. E ali mesmo foi agarrado por populares e por soldados. Apesar de muito ferido, o assassino ainda teve forças para morder a mão de um dos expedecionários, que lhe desferiu um tiro na cabeça. E o Tenente Figueira, levemente curvado sobre a coxa direita”, ferida por uma bala do regicida, “gritava de cima do cavalo: ‘Dêem-me a carabina desse assassino!...’ Dos cinco tiros que o carregador da Winchester comportava, Buíça não falhou um único!” (Miguel Sanches de Baêna, Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio, Publicações Alfa, Lisboa 1990, págs. 183-184). Caso para dizer que o regicida teve uma sorte dos diabos.
Neste relato, impressiona tanto a violência dos agressores como a fúria dos defensores, mas não se equiparem ambas acções porque, enquanto uns agiram criminosamente, outros fizeram-no em legítima defesa, não apenas do seu Rei, mas também da Pátria. Por isso, enquanto os primeiros carecem do nosso perdão e dos nossos sufrágios, a nossa oração pelas reais vítimas há-de ser de acção de graças e de louvor: que Deus os tenha na sua glória e que a Pátria nunca esqueça o seu sacrifício!
- Conclusão. Na leitura da profecia de Malaquias, ouvimos a “fala do Senhor Deus: ‘Vou enviar o meu mensageiro, para preparar o caminho diante de Mim’” (Mal 3, 1). Honremos a memória de el-Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe, mártires da Pátria que, com o holocausto das suas vidas, nos ensinaram a gastar as nossas existências ao serviço de Deus e de Portugal. Eles, vítimas do ódio, foram mensageiros da paz, que é, decerto, o seu principal legado e maior herança, mas também da caridade cristã, porque “não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos” (Jo 15, 13).
Lembremos também o soldado Henrique Valente e o não menos valente Tenente Francisco Figueira Freire que, mesmo feridos com gravidade, lutaram pelo seu Rei e pelo seu país, honrando as suas fardas com o testemunho supremo da heroicidade. O seu exemplo não é apenas para os militares, porque todos os portugueses, qualquer que seja a sua condição e profissão, devem estar também comprometidos com uma causa que os transcende, como é o serviço do bem comum e da nação.
Que bem soube expressar este espírito de serviço e de missão o inspirado autor da Mensagem, através da voz anónima do homem do leme! Recorrendo, nesta véspera da festa da apresentação do Senhor, à intercessão da nossa Padroeira e Rainha, Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, façamos nossa essa prece que, com a audácia dos santos e a coragem dos heróis, desafia o destino: “Aqui ao leme sou mais do que eu: sou um Povo que quer o mar que é teu! E mais que o mostrengo, que me a alma teme, e roda nas trevas do fim do mundo, manda a vontade, que me ata ao leme, de El-Rei D. João Segundo!” (Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa 1934, Parceria António Maria Pereira, pág. 56).
Assim seja!
Gonçalo Portocarrero de Almada