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BLOGUE REAL ASSOCIAÇÃO DE LISBOA

Homilia da Missa de Sufrágio regicídio 2023

Rev. Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, Igreja de São Vicente de Fora, 1-2-2023

O REI E A FAMÍLIA REAL

  1. Introdução. “Naquele tempo, Jesus dirigiu-Se à sua terra e os discípulos acompanharam-n’O” (Mc 6, 1) – assim se inicia o trecho do Evangelho que corresponde a esta quarta-feira da semana quarta do tempo comum, que é também o primeiro dia do mês de Fevereiro e, sobretudo, o aniversário do regicídio que vitimou, no Terreiro do Paço, Sua Majestade Fidelíssima, El-Rei D. Carlos I, e o Príncipe Real, D. Luís Filipe. É sobretudo a sua memória que, aqui e agora, se evoca, sufragando as suas almas, sem esquecer os demais membros da Família Real já falecidos, nomeadamente Suas Majestades El-Rei D. Manuel II e a Rainha D. Amélia.

Como é já tradição nesta celebração anual, depois de concluída a Eucaristia, rezaremos um responso pelas almas das reais vítimas do regicídio, bem como por todos os restantes monarcas, príncipes e infantes, cujos restos mortais aguardam, no vizinho panteão real, a gloriosa ressurreição. Agradeço ao Reverendíssimo Senhor Cónego Jorge Dias, Reitor desta Igreja de São Vicente de Fora, por ter disponibilizado este magnífico templo para esta celebração. Comigo concelebra o Reverendíssimo Senhor Padre Tiago Ribeiro Pinto, que depois presidirá à celebração litúrgica no anexo panteão, muito grato pela sua presença, bem como pelo seu testemunho de fidelidade a Deus, na sua Santa Igreja, e a sua sacrificada disponibilidade no serviço da Família Real.

Terminadas as apresentações respeitantes ao clero, devo, em primeiro lugar, cumprimentar Suas Altezas Reais, os Senhores Duques de Bragança, na sua dupla qualidade de Chefes da Casa Real e de representantes de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real. Infelizmente, nem sempre as notícias que nos chegam de outras Casas Reais beneficiam a imagem da Instituição junto da opinião pública, mas, no que ao nosso país se refere, devemos dar graças a Deus pelo exemplo que, de forma discreta mas tão convincente, constantemente nos chega do Senhor Dom Duarte e da Senhora Dona Isabel. Ambos, com efeito, são exemplares, não apenas no seu patriótico serviço a Portugal, mas também no seu eloquente testemunho de fidelidade à Igreja católica que, fazendo jus a tão sincera e ininterrupta devoção dos monarcas lusitanos, os honrou com o título de fidelíssimos, que também é devido aos actuais titulares da Casa Real portuguesa, não apenas como seus representantes, mas também a título pessoal.

Como é também da praxe, saúdo os Presidentes da Causa Real e da Real Associação de Lisboa, os Cavaleiros e Damas da Ordem Soberana e Militar de São João, dita de Malta, e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém, que igualmente honram esta celebração com a sua piedosa presença. Cumprimento ainda os membros das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em representação da nossa Padroeira e Rainha, a Senhora da Conceição, e de Santa Isabel, a nossa tão popular e querida Rainha Santa.

É com especial gratidão que me dirijo, por fim, a todos os demais fiéis que, certamente com sacrifício, mais uma vez participam nesta Missa de sufrágio pelas vítimas do regicídio de 1908, enaltecendo, em primeiro lugar, a piedade da sua participação nesta celebração litúrgica. A memória de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real não apenas diz respeito aos que se revêem na Instituição Real, porque todos os verdadeiros patriotas não podem deixar de venerar estes insignes mártires da Pátria.

  1. O regresso de Jesus a Nazaré. Embora o evangelista São Marcos indique Nazaré como sendo a ‘pátria’ de Jesus (cf. Mc 6, 1), na realidade o não era, por duas principais razões. Com efeito, a sua naturalidade era a cidade de Belém, indicada como sendo, precisamente, a naturalidade do tão esperado Messias (cf. Miq 5, 2; Mt 1, 4-6). Era também Belém de Judá a sua pátria em sentido estricto, ou seja, a terra dos seus pais, na medida em que, pela linhagem de José, o filho de Maria era, legal e socialmente, da casa e família do Rei David (Lc 2, 4).

No entanto, como por razões de prudência, a Sagrada Família, ao regressar do exílio no Egipto, decidiu não regressar a Belém, estabelecendo-se na Galileia, numa pequena povoação chamada Nazaré (cf. Mt 2, 19-23) e que, a julgar por uma afirmação de Natanael – “De Nazaré pode porventura sair coisa que seja boa” (Jo 1, 46) – não era uma terra principal. Contudo, é de Nazaré que Jesus toma o nome, apelidando-se, desde então, pela referência a essa terra, segundo aliás uma praxe muito habitual, também entre nós, em que inúmeras famílias, sobretudo se apelidadas com um nome comum, acrescentaram ao apelido dos seus antepassados a referência toponímica (é, por exemplo, o caso dos Ferreira Pinto, de Basto; ou os Gonçalves Macieira, de Macieira da Maia, que trocaram o patronímico pela referência topográfica que, desde então, designa a família).

No princípio da sua vida pública, Jesus muda-se para Cafarnaum. Desde então, é aí que tem a sua residência, possivelmente na casa do pescador Simão, irmão de André, a quem chamará Pedro (cf. Jo 1, 42) por ser ele, como primeiro Papa, aquele sobre o qual o Mestre construirá a sua Igreja (cf. Mt 16, 18). Não obstante este seu domicílio, o ministério de Cristo é peripatético, no sentido em que continuamente percorre a Judeia e a Galileia, atravessando também a Samaria, onde não se demora, por razão dos atritos entre samaritanos e judeus, de que deu conta a boa mulher que Jesus encontrou junto ao poço de Sicar (cf. Jo 4, 1-26).

Mas Nazaré, apesar das frequentes deslocações de Jesus, continua presente na vida do Mestre, não apenas por ter sido o lugar da sua infância, adolescência e maturidade, ou porque aí exerceu, durante anos a fio, o mesmo ofício de São José (cf. Mc 6, 3), mas sobretudo porque aí permanecia sua Mãe, Maria. Quer pela sua viuvez – não se sabe quando se deu o falecimento de José, mas decerto já tinha ocorrido quando se dá o casamento em Caná da Galileia, em que já não está presente (cf., Jo 2, 1-11) – quer também por Jesus ser filho único – por este motivo, na Cruz, entrega a sua Mãe a João (cf. Jo 19, 25-27), por não ter irmãos a quem  a deixar – Nossa Senhora estava muito só, humanamente falando. Por uma razão de piedade filial e da mais elementar justiça, Jesus não podia deixar de visitar Nossa Senhora com alguma frequência. Maria aceitaria essa dolorosa separação, com o mesmo espírito com que também se resignou ante a morte do seu Filho na Cruz, porque era assim que se devia cumprir a vontade salvífica de Deus.

Sendo Maria muito provavelmente natural de Nazaré, como diz São Lucas (cf. Lc 1, 26-27), de lá seriam também os seus pais, irmãos e sobrinhos. São estes, precisamente, que são aqui referidos como ‘irmãos’ de Jesus, porque a língua aramaica não distingue irmãos e primos direitos, ou coirmãos, a todos chamando, genericamente, irmãos. Portanto, os citados “Tiago, José, Judas e Simão”, bem como “as suas irmãs” (Mc 6, 3) eram, pela certa, sobrinhos de Maria e, portanto, primos direitos de Jesus. Deve ter sido com eles que, por serem da sua família e mais ou menos da sua idade, Jesus mais conviveu durante a sua infância e adolescência, até porque a família paterna, sendo José de Belém de Judá, não estaria tão próxima, nem seria, por isso, acessível. O facto de a Sagrada Família não ter encontrado alojamento em Belém, quando era iminente o nascimento de Jesus (cf. Lc 2, 1-7), que por isso teve de vir ao mundo num estábulo, indicia uma relação distante, senão mesmo hostil, de José com os seus parentes que ainda viviam em Belém.

Apesar de Pedro e André serem irmãos, como também o eram os filhos de Zebedeu, João e Tiago, cuja mãe pede a Nosso Senhor que coloque estes dois seus filhos à sua direita e esquerda (o que já me levou a pensar que devia ser portuguesa, e que, pela certa, o seu apelido era Cunha!), não parece que os parentes de Jesus tenham aderido à sua pregação. Pode ser que esta sua aparente indiferença se deva ao facto de Jesus, ao tempo da sua permanência na Galileia, onde com eles convivia naturalmente, não ter protagonizado nenhum acontecimento extraordinário, pois o seu primeiro milagre aconteceu em Caná da Galileia (cf. Jo 2, 1-11). Não só os familiares de Jesus parecem pouco dispostos a acreditar na sua mensagem, como até chegam a provocar um episódio caricato, quando O quiseram “prender, porque diziam: ‘Está louco’.” (Mc 3, 21).

  1. A especial missão da Família Real. Quando, no dia de sábado, já em Nazaré, Jesus começou a ensinar na sinagoga, os seus conterrâneos comentaram: “‘De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?’. E ficavam perplexos a seu respeito.” (Mc 6, 2-3).

A perplexidade daqueles parentes de Jesus é a nossa também: como é possível que, conhecendo-O há tanto tempo, não soubessem quem Ele era?! Como explicar aquela estranheza, vinda daqueles que era suposto que mais e melhor O deviam conhecer e amar?! Se surpreende a hostilidade que Jesus sofreu noutras regiões da Terra Santa, indigna esta incredulidade daqueles que, por serem os seus parentes, deviam ser os seus melhores amigos e fiéis seguidores.

Jesus também não escondeu a sua perplexidade, ante a frieza dos ditos seus irmãos, e demais conterrâneos: “Jesus disse-lhes: ‘Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa’.” Essa ingratidão daqueles seus primos e demais nazarenos, explica que Nosso Senhor não tenha feito nenhum prodígio em Nazaré, como também explica São Marcos: “Não podia ali fazer qualquer milagre; apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando” (Mc 6, 1-6).

Quando, logo após o vil assassinato do Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe, as augustas mães de ambos se encontraram, a Rainha D. Maria Pia exclamou: “-Mataram o meu filho!”, ao que a Rainha D. Amélia, que tinha acabado de enviuvar, respondeu: “- Também mataram o meu!”  Enquanto a Rainha Mãe tinha a lamentar a morte de um filho e de um neto, a Rainha D. Amélia acabava de perder o marido e o filho primogénito. Ambas foram, nesses seus tão dolorosos lutos, vítimas do regicídio, porque os mesmos tiros que cobardemente mataram o Rei e o Príncipe Real, feriram os seus corações maternos. O que caracteriza a monarquia não é tanto, como o nome erradamente sugere, o governo de um só, mas de uma Família que, se tem direito a acrescidas honras, é também porque tem redobradas obrigações no que respeita o serviço do Estado e da Instituição Real.

Enquanto, em república, os familiares do Chefe do Estado não têm qualquer missão, nem estatuto oficial, na monarquia o cônjuge do monarca com ele partilha a realeza, com o título de Rainha ou, entre nós, depois de nascido o Príncipe herdeiro, de Rei. Também os irmãos e sobrinhos do soberano estão naturalmente chamados ao desempenho de funções de representação nacional, sempre em total fidelidade e subordinação ao soberano. São, aliás, estas funções que justificam que, nas modernas monarquias europeias, os príncipes da Família reinante recebam encargos de representação.

O último gesto do Príncipe Real, Dom Luís Filipe, foi o de defender o seu augusto Pai, expondo-se assim às balas que causaram a sua morte. Não foi apenas um mártir da Pátria, mas também um heroico exemplo de devoção filial e de fidelidade ao seu Rei e Senhor. Se tivesse pensado, nesse momento trágico, em si mesmo, o Príncipe poder-se-ia ter resguardado, mais ainda sendo ele o que, na ausência do seu pai, estava chamado a ocupar o trono lusitano. Com a nobreza que é timbre dos verdadeiros príncipes, D. Luís Filipe sabia que o seu principal dever era servir o seu Rei, mesmo que fosse à custa da sua vida. O seu sacrifício não foi em vão, porque permanece como lição de amor filial e do que a Coroa espera de todos os membros da Família Real, bem como de quantos fizeram sua esta Causa.

Se é verdade, como já se disse, que de Suas Altezas Reais, os Senhores Duques de Bragança, só há a registar exemplos de virtudes cívicas e cristãs, o mesmo se pode dizer, graças a Deus, dos actuais Príncipes da Casa de Bragança. Em tudo o mais, os Infantes podem ceder a primazia, mas no serviço ao Rei e à Pátria, compete-lhes sempre o primeiro lugar, para que a ‘alteza’ da sua condição seja justificada pela elevação da sua vida moral, familiar e pessoal. Não se exige a um Infante de Portugal que seja célebre, nem famoso, mas que seja o primeiro em honrar e servir o seu País, pelo respeito e serviço ao Rei e a Portugal.

  1. Conclusão. O relato evangélico agora proclamado termina com uma constatação de facto que nos enche de tristeza e, também, de apreensão: “não podia ali fazer qualquer milagre; apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando” (Mc 6, 5-6). Tristeza, porque a falta de fé daquelas gentes de Nazaré foi a causa que impediu os muitos milagres que o Mestre poderia ter feito lá, em benefício dos mais necessitados dos seus compatriotas. Apreensão porque, se assim foi há dois mil anos, também agora pode acontecer que o Senhor não faça os milagres, que são necessários para a salvação da nossa pátria, precisamente pela nossa falta de fé.

Em Caná da Galileia, foi a Maria a quem se ficou a dever o primeiro milagre de Jesus, em virtude do qual não só converteu a água em vinho, como também os discípulos do Senhor n’Ele creram (Jo 2, 1-11). Que a fé de Maria, que está na origem da fé da Igreja, crie em nós aquela firme disposição de que Jesus quer precisar para que, finalmente, se cumpra Portugal!   

Gonçalo Portocarrero de Almada

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Compreender o regicídio

Daniel Santos Sousa

 

Quando Portugal teve 3 Reis em apenas 1 dia | VortexMag

1- Nas origens da tragédia


O regicídio cultiva nas diferentes fileiras políticas um misto de simpatia e de desprezo, de romantismo e de horror. Assim como na morte de Luís XVI, em França, de Nicolau II, na Rússia, ou  a morte do rei mártir Carlos I, em Inglaterra, não há tragédia que não venha antecedida de uma circunstância, entretecida por motivos e ideais programados à inteligência dos homens. Compreender um crime não é um acto de compaixão, mas de justiça, por mais complexo, arbitrário, obscuro, que nos possa parecer.

Aquilino Ribeiro tece um retrato apaixonado dos regicidas, ele próprio um cúmplice. No livro “Um escritor confessa-se” a descrição mede o rancor e o desprezo com que olhava o regime; ali traça a espera justicialista da redenção pelo crime, do sangue pela virtude. Aquilino escreve: “o regicídio foi a enfloração lógica de ideias, ódios e revoltas, semeados a trouxe-mouxe por monárquicos e republicanos num solo bárbaro, propício à violência”.

Independentemente do contexto a reflexão parece lapidar e soma as várias circunstâncias que altivaram a catástrofe. O século XIX é bárbaro e inclemente numa sinecura de traições e cobardias. A guerra civil dilacerara as consciências, onde apenas poderia restar o divisionismo e o sectarismo partidário. As inteligências não progrediram dessa angústia, restando a evolução dum sistema parlamentar e rotativo muitas vezes olhado com desdém. Ainda que as obras de melhoramentos materiais, as grandes reformas codificadoras, a transformação político-administrativa perpetrada pelo regime tenha mudado Portugal. Acuse-se o facto de o constitucionalismo ter sido imposto de cima para baixo, muitas vezes confrontando a desconfianças do povo e a incompreensão do “país legal” face ao “país real”. O trono fora poupado, mas as forças que avançavam faziam antever o pior. Fialho de Almeida constatava: “Ah, os tempos mudaram! Já não são os reis que fazem os povos”[1].

2 – O radicalismo na monarquia

A maçonaria radicalizava-se no ano de 1907 com a eleição, para grão-mestre, de Magalhães Lima, nele, o discurso contra o trono e o anticlericalismo eram constantes. A carbonária portuguesa, copiada da italiana de onde tem origem, era verdadeiramente uma milícia armada, como comprovam os testemunhos da época. Os populares acorriam à seita e mesmo os próprios republicanos ficaram incrédulos perante uma lista de carbonários apresentada por Antonio José de Almeida. Treinavam o tiro e incentivavam o ódio ao regime, ódio ao Rei sobretudo, e estavam prontos a matar e a morrer por aquela causa.

Como notava um jornalista republicano, Homem Cristo, a antipatia a D. Carlos resultava “unicamente da forte personalidade que, desde príncipe real, D. Carlos revelara…” e como o povo de Lisboa “sentia, por instinto, no futuro reinante, um adversário.” [2] . Outro, Júlio Vilhena, diria que, D. Carlos fora morto, “não pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades”.

Dentro do regime os ânimos acicatavam ódios antevendo o pior. José Apolim, chefe do Partido Regenerador, tivera atitudes desprezíveis e odiosas face a D. Carlos, levando o jornalista republicano Pinheiro Chagas a cognominar esse político como “o regicida”. Constata-se, assim, no seio da própria monarquia, uma vacuidade total para defender o trono. Quanto aos que podiam defender o Rei, esses iam desaparecendo, primeiro Fontes, o líder regenerador, depois Braancamp, líder progressista, mais tarde Hintze Ribeiro, dedicado conselheiro do Rei, que morreria decepcionado por ter sido preterido por João Franco. Desapaixonadamente, D. Carlos confessaria: “Isto é uma monarquia sem monárquicos”.

3 – Um rei entre tragédias

D. Carlos teve grandes êxitos na política colonial, e, ao mesmo tempo, uma grande derrota que foi o Ultimatum Britânico. Teve consciência dos vícios que corroíam o poder e conhecia bem os desígnios da autoridade, suficientemente consciencioso para ser um realista político e perceber a enfermidade de que vivia o regime [3]. Bonacheirão e marialva, bon vivant, verdadeira têmpera aristocrática, tinha ao mesmo tempo o sangue vivo dos Sabóia. Pela têmpera jamais se deixaria desrespeitar, podia ser clemente e rígido, autoritário e impávido, ao mesmo tempo, mas nunca cobarde e jamais recuaria face ao perigo. Mas também um activo estudioso de oceanografia, pintor exímio e homem de estado audacioso e determinante [4].

O rei resistiu à primeira tentativa de golpe republicano no Porto, a 31 de Janeiro de 1891, ali demonstrou que não deixaria ser derrubado. A desordem não ficou por aqui. Em 1906, a tripulação a bordo do cruzador “D. Carlos” amotinou-se, obra de uma sociedade secreta, segundo se apurou, com sangue frio resiste a todas as crises e apercebe-se da insustentável fragilidade do regime. Procurou assim combater a decadência do sistema através de uma "revolução de topo" (conforme propugnara Hegel) e que encontrara expressão, no fim de século, pela  pena de Oliveira Martins no programa da "Vida Nova". Desaparecido na decepção profunda em que mergulhava o país restou a D. Carlos confrontar-se com as exigências de um tempo que parecia ameaçar todas as instituições. João Fraco seria, pois, o último  baluarte face ao avanço da desordem. Sobre o ministro recaíram todas as antipatias e respeitos (conforme se interpretem as suas decisões e conforme se estudem as suas medidas políticas). Não há como concordar na atitude do Rei face à certeza de que nem progressistas nem regeneradores conseguiam governar com o Parlamento.

Sobre a “ditadura” franquista, uma geração de historiadores republicanos, e mais tarde de historiadores marxistas, fez a confusão mais espúria ao ver Franco como uma antecipação do salazarismo (o que não é verdade [5]). João Franco era um liberal, um homem do sistema que compreendia a fragilidade do regime, o que protagonizava não se afastava dos modelos a que a restante Europa propugnava: um regime que mantivesse a liberdade e garantisse a ordem. Tal como Bismarck, na Alemanha, ou Disraeli, na Inglaterra, procurava as medidas necessárias para reformar o sistema. Este tipo de “ditadura” era comum nos sistemas liberais: o rei dissolvida o parlamento e nomeava um chefe do governo com o qual elaboraria decretos que seriam aprovados quando o parlamento reabrisse [6].

A ditadura servia como última consequência do demo-liberalismo, no fundo uma “ditadura administrativa” que mais não agoirou do que em ódios fervorosos tanto dos monárquicos, como dos republicanos, numa crescente de ataques que iam desde vaias ao rei a críticas ferozes a João Franco.

4 – A desordem

Seria fácil acusar apenas o grupo, não muito significativo, de republicanos pelas críticas e conspirações, ou ver na carbonária o braço armado que levou ao assassinato, ou ainda tecer injúrias a Buiça e a Costa. Acontece que os próprios políticos dos partidos monárquicos estavam de conluio no ódio ao Rei alimentados pelo apoio que dava a João Franco, a priori, este seria o homem a abater.

A primeira conspiração correu mal, a 28 de Janeiro de 1908. A ideia era raptar João Franco, o que falhou; enquanto outros que ficaram de invadir a Câmara Municipal foram denunciados e perseguidos. Percebiam-se os ataques à ditadura de João Franco e era necessário que não houvesse tréguas. Procurou-se que o rei soubesse os motivos da revolta e assinasse um decreto onde permitiria que deportassem para o desterro no ultramar os chefes republicanos. O rei assinou, declarando: “Assino a minha sentença de morte”.

 A 1 de Fevereiro quando o rei e a família real desembarcaram no Terreiro do Paço veio a catástrofe. Embora se tenha justificado que o Rei e o filho foram mortos porque os conjurados não encontraram João Franco, o facto é que havia entre os revolucionários quem entendesse ser necessário “abater” o Rei. O tiro que matou D.Carlos foi desferido por Buiça, um professor primário; o outro tiro, que abateu um jovem príncipe de vinte anos, foi desferido por Costa, um caixeiro duma loja de Lisboa. Ambos carbonários, homens idealistas e fanáticos.

A descrição de Aquilino surpreende num homem que a cultura lusa tem por sumidade, demonstra como até as mentes mais esclarecidas conseguem ficar entupidas de fanatismo. A sua critica à monarquia é básica e as suas observações rudimentares, não superam a fragilidade da coscuvilhice e do mal-dizer, não tem argumentos sólidos, mas a forma como escreve e o que o motiva a escrever, é talvez determinante para chegar à mente dos regicidas e da percepção que estes tiveram naquele segundo em que premiram o gatilho.

Ele escreve: “A geração a que pertenço nasceu revolucionária, as gerações que alvoreceram depois de mim revolucionárias perduram.” Era talvez uma verdade mais romântica do que realista, mas é a partir desta declaração que percebemos muitas das contradições de um tempo que ansiava por uma nova alvorada, de utopia e de sonho, de revolução e de morte, de sangue e de martírio.

O século XX português começa então em 1908, num Portugal já sem grandes certezas da sua missão histórica, pessimista quanto ao futuro, dividido em facções políticas entre ambições e desalentos que gerariam as crises das próximas décadas.
_____________________________
[1] PABON, Jesus, A Revolução Portuguesa, colecção Grandes Estudos Históricos 1959.
[2] CRISTO, Homem, Notas, IV, Lisboa,
[3] RAMOS, Rui, D. Carlos, Coleccção Reis de Portugal, Vol.XXXIII
[4] Idem
[5]RAMOS, Rui, João Franco: uma educação liberal (1884-1897) Análise Social, vol.xxxvi (160), 2001, 735-766, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
[6] RAMOS, Rui, …

Daniel Santos Sousa

A Real Associação de Lisboa é uma estrutura regional integrante da Causa Real, o movimento monárquico de âmbito nacional. Esta é uma associação que visa a divulgação, promoção e defesa da monarquia e da Instituição Real corporizada na Coroa Portuguesa, cujos direitos dinásticos estão na pessoa do Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança e em quem legitimamente lhe vier a suceder. Cabe a esta associação a prossecução de iniciativas e de projectos de interesse cultural, social, assistencial e de solidariedade que visem a dignificação, a valorização e o desenvolvimento dos seus associados e da comunidade em que se insere.

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  208. D