Monarquia portuguesa e constituição
a propósito de algumas recentes (re)leituras
I Um novo interesse pela monarquia ao nível das ciências constitucionais
No nosso tempo, parece definir-se, em sede de ciências constitucionais, um novo interesse pela monarquia enquanto realidade constitucional. A tal não será estranha a circunstância de, nos saberes que têm a constituição como objeto, ser crescente a propensão para teorizar o político-constitucional no exterior de “caixas” progressivistas, convencionais e lineares.
As monarquias europeias tornam a ser exaustivamente estudadas e analisadas num plano de direito constitucional comparado, atendendo às suas subsistentes “intensidades” de poder e de autoridade, ao tipo de fontes normativas que as regulam, às práticas constitucionais, aos nexos morais com a chamada “sociedade civil” (Robert Hazell, Bob Morris, 2020).
A paradigmática experiência britânica é escalpelizada e escrutinada, com o auxílio de especialistas, em busca de resíduos “discretos” de poder real, maxime em especiais procedimentos legislativos suscetíveis de afetar a posição da coroa, aos quais a Rainha terá de dar consentimento prévio (resíduos esses distintamente valorados pelos vários observadores ou analistas) [Guardian, 7.02.21].
A própria dicotomia pura entre monarquia e república – a qual tende a ser referida ao modo de designação da chefatura do Estado – é alvo de questionamento, sendo notada e interrogada a construção, em repúblicas (?), de novos esquemas de intenso reconhecimento jurídico-público de certas casas reais enquanto realidades institucionais (os casos montenegrino e romeno sendo disso os mais acabados exemplos) [Marcin Wiszowaty, 2017].
Em Portugal têm sido elaboradas releituras assumidamente teórico-constitucionais da ordem fundamental da antiga monarquia portuguesa e da sua subsequente refundação na época liberal (Vital Moreira e José Domingues, 2020).
II A redescoberta da dimensão constitucional(ista) da monarquia portuguesa
Quanto às referidas releituras da história constitucional portuguesa, afigura-se, desde logo, relevante – a vários títulos e não só de uma perspetiva monárquica – a afirmação mesma de que a monarquia pré-liberal consubstanciou uma constituição.
Está em causa, é certo, uma “aplicação” coerente ao caso português da ideia de que toda a comunidade política possui uma ordem, uma forma ou estrutura normativa básicas, uma constituição em sentido material (uma ideia de derivação clássica que se tem vindo a tonar um adquirido na ciência do direito constitucional): o antigo Portugal possuiu a sua forma [monarquia de caráter misto e representativa (estamental-corporativa)], ainda que não definida numa constituição em sentido formal.
Não obstante, pretende ainda explicitar-se algo mais – o carácter em certo sentido “constitucionalista” da ordem tradicional, dada a limitação jurídica do poder político por ela operada. É que, na autoconsciência constitucional da antiga monarquia, ao poder régio esteve vedado dispor unilateralmente sobre certas matérias eminentes: (regras de) sucessão na Coroa, lançamento de novos impostos, quebra da moeda. Nessas áreas, reinava um princípio excecional de obrigatória codecisão entre Rei e Reino articulado em Cortes. Daí a sedimentação progressiva do conceito de Leis Fundamentais, explicitado e afirmado na sequência do evento da Restauração, cujas cortes de 1641 haviam recebido, como jus-fundamental, o tido por disposto – no tocante à sucessão do Reino – nas Cortes de Lamego (1143). Mesmo em tempos de destaque absolutista em relação à «constituição tradicional», mantiveram-se as ditas noções (ainda que se tendesse a reduzir o âmbito da normatividade fundamental, nos interesses de uma monarquia que então se queria pura ou plena).
III. A constante (híper-)constitucional em tema sucessão da Coroa
Nos mencionados exercícios de releitura da história constitucional portuguesa, ficam também patentes importantes contextos fundacionais e traços nucleares do posterior constitucionalismo monárquico, alguns nem sempre devidamente sublinhados ou acentuados.
Transparece, por exemplo, que a grande guerra civil portuguesa foi também uma querela jurídica em torno da interpretação do sentido e alcance das regras sobre a sucessão da coroa contidas nas Leis Fundamentais do Reino. Uma pugna argumentativa que, em última instância, não deixou de partir de lugares-comuns, de tópicos partilhados, de interrogações por todos aceites como decisivas (desde logo, a questão de saber o que significaria, num plano de aplicação das ditas regras sucessórias, o conceito de estrangeiro) [Vital Moreira e José Domingues, 2021].
De facto, como havia sublinhado o ilustre Franz-Paul de Almeida Langhans e é agora recordado por autorizados cultores do direito e da história constitucionais, uma certa dimensão de continuidade concreta de «fundamentos jurídicos» atravessaria incólume os séculos monárquicos da polis portuguesa: a substância jus-sucessória das Leis de Lamego seria, no essencial, transcrita em articulado nas primeiras constituições formais que Portugal conheceu (Franz-Paul de Almeida Langhans, 1951).
Contra um tal pano de fundo se compreende, em certa medida, a “naturalidade” com que, durante a terceira e longa vigência da carta constitucional (1842-1910), a ordem da «sucessão do Reino» era tida por regulada ao nível do texto constitucional – artigos 86.º a 90.º do referido ato jurídico-público (José Joaquim Lopes Praça, 1880, pp. 209 e ss.). A essa luz se entende também a consideração dessa área normativa como matéria constitucional não modificável por lei ordinária. No que terá sido o último manual de direito constitucional publicado em tempos de monarquia (1910), o célebre professor Marnoco e Souza pôde asseverar: «A ordem da sucessão real é matéria constitucional, em harmonia com o disposto no art. 144.º da Carta Constitucional. Por isso, não pode ser alterada pelas cortes ordinárias» (José Ferreira Marnoco e Souza, 1910, p. 794).
A propósito das digressões anteriores, note-se que a dita «Lei da Proscrição» – o art.1.º da Carta de Lei de 19 de dezembro de 1834 (uma lei ordinária) que excluía da sucessão o Rei vencido e seus descendentes – cessaria de vigorar logo em 1836, por força da nova vigência, pós-revolução de setembro, da Constituição de 1822 e respetivos preceitos jus-sucessórios “normais”. A Constituição de 1838, no seu articulado, recuperaria, é certo, as exclusões de 1834, assim introduzindo circunstanciais distorções na pureza do legado de Lamego. Passado pouco tempo, a Constituição de 1838 seria, porém, revogada, sendo reposta em vigor, em 1842, a Carta Constitucional, com as suas regras jus-sucessórias “tradicionais”, neste plano (José Augusto Vaz Pinto, 1933).
IV Da «sociabilidade pré-política do povo português» e da sua instituição real
Na atenção prestada a novos olhares sobre a história constitucional do Portugal Real, não se trata apenas de um trabalho de clarificação ou “limpeza” da memória constitucional.
Estão em causa os fundamentos normativos de uma instituição – a Casa Real Portuguesa, a verdadeira «Casa de Portugal» (como já se disse em outros tempos) – que continua e deve continuar a ser uma tradição viva num plano existencial de «sociabilidade pré-política do povo português», ainda que apenas tacitamente reconhecida pela ordem política atual (ao abrigo, porventura, de um módico respeito por um proclamado princípio constitucional de respeito pela identidade nacional que a CRP de 1976 acolherá, apesar de tudo). E, sobretudo, talvez seja acertada a hipótese, sugerida na mais recente e problematizante literatura filosófico-política (ocidental e portuguesa), segundo a qual a reconstrução da ordem político-constitucional terá de passar por uma religação desta última a um fundo de «comunidade histórica de cultura» (Alexandre Franco de Sá, 2021).
Pedro Velez
Texto originalmente publicado na revista Correio Real nº 24
Referências bibliográficas:
Alexandre Franco de Sá, Ideias Sem Centro – Esquerda e Direita no Populismo Contemporâneo, Dom Quixote, Lisboa, 2021.
José Augusto Vaz Pinto, A sucessão do Senhor Dom Manuel segundo a Carta Constitucional (1832), reproduzido em Documentos da Aclamação de El-Rei D. Duarte II, Edição das Juventudes Monárquicas, Lisboa, 1933, pp. 27 a 29.
Franz-Paul de Almeida Langhans, Fundamentos Jurídicos da Monarquia Portuguesa, Empresa Nacional de Publicidade, Lisboa, 1951.
1910 . . Marnoco e Souza, Direito Politico, Poderes do Estado/sua organização segundo a sciencia politica e o direito constitucional português, França Amado Editor, Coimbra, 1910.
1911 J. Lopes Praça, Direito Constitucional Portuguez, Estudos sobre a Carta Constitucional de 1826 e Acto Addicional de 1852, 2.ª Parte, vol. II, Liv. Portugueza e Estrangeira, Coimbra, 1880.
Marcin Wiszowaty, Return of the Kings. Institutionalization of the Royal Families in the Republics of Romania and Montenegro in the 21st century, em Gdańskie Studia Prawnicze / Gdańsk Law Studies, XXXVIII, 2017, pp. 245-263 [disponível online].
Robert Hazell, Bob Morris (ed.), The Role of Monarchy in Modern Democracy: European Monarchies Compared, Hart Publishing/Bloomsbury Publishing, Oxford, London, etc., 2020.
Vital Moreira e José Domingues, História Constitucional Portuguesa I: Constitucionalismo antes da Constituição (Séculos XII-XIX), Assembleia da República – Divisão de Edições, Lisboa 2020.
Vital Moreira e José Domingues, No Bicentenário da Revolução Liberal - Livro 3: Vida e Obra Política de José Ferreira Borges, Porto Editora, Porto, 2021.