Estou bastante decepcionado com os comentários que tenho ouvido sobre a abstenção de 60% nestas presidenciais – percentagem para a qual contribuí alegremente, como já tinha feito para os não-pandémicos 51% de 2016 e os 53% de 2011. Em vez de, como de costume, esta opção da maioria absoluta do eleitorado em mandar à fava os candidatos semi-presidenciais provocar a necessidade de uma “profunda reflexão”, agora há um sentimento de alívio por a abstenção não ter sido ainda maior. Foi a pandemia, foi não sei quê com cadernos eleitorais e emigrantes, foi as reeleições serem sempre menos participadas (esquecendo, claro, os 70% com que Mário Soares conseguiu o segundo mandato em 2011).
Políticos, comentadores e demais especialistas que passam horas a examinar meticulosamente sondagens garantem-nos que “esperavam muito pior”. Pois eu esperava muito melhor, porque confiei em sondagens meteorológicas e queria ver a abstenção superar os 70%, já que não estava a ver o eleitorado esperar em filas ao ar livre, à chuva e ao vento previstos, para cumprir o seu “dever cívico”.
Por falar em “civismo”, parece que é isso que nos falta a nós abstencionistas em presidenciais. Isso e não sermos suficientemente espertos, deixando que “outros decidam por nós”. Claro que não mereceríamos essas classificações se apoiássemos candidatos do comunismo, do venturismo ou do tinoismo. Ou se fossemos contribuir com o nosso voto para eleger semi-presidentes de uma república falida, venal, imbecilizada com esquematismos esquerda x direita, que nem sequer consegue identificar os motivos da sua decadência, quanto mais mudar de rumo para os ultrapassar. E vamos mas é avançar, porque temos de novo um “presidente de todos os portugueses”, eleito, de facto, por 23% dos eleitores.
Nota: Quadro de abertura retirado da página de Facebook de Nuno Garoupa
Em vésperas de eleições presidenciais e quase terminada uma caricata campanha eleitoral é no mínimo revigorante assistir à entrevista integral dada ontem pelos Duques de Bragança ao programa «Dois às 10» da TVI com uma surpreendente aparição dos Infantes que que falam da experiência de pertencer a uma família real com tanta história em Portugal.
O Rei é livre, já se gritou em Almacave. Que se continue a viver num regime que promove a ilusão de liberdade é algo que é nossa responsabilidade combater e denunciar.
Existe uma espécie de contrato tácito que é pedido aos leitores de ficção literária ou espectadores de artes performativas como o cinema ou o teatro, por exemplo: é a suspensão da descrença. Ou seja: pelo tempo que durarem aqueles espectáculos ou aquelas páginas nós acreditamos que os personagens são reais, que vivem e acreditam o que exibem naquele momento. Mesmo o mais cínico dos cínicos não terá coragem de interromper uma peça para dizer que nada do que está em palco é verdade e que os actores não são quem ali estão a dizer que são. É um acordo benéfico para as duas partes e que resulta quanto melhor essa descrença for conseguida por quem escreve ou interpreta.
Se o leitor começa a estranhar o intróito inesperado, avanço já com a analogia: a eleição de um presidente da república portuguesa – para ficarmos pelo que nos é próximo e nos interessa - vive também da suspensão da descrença. Expliquemos: o artigo 122 da nossa Constituição declara que como condição de elegibilidade o candidato deva ser cidadão português e com idade igual ou superior a 35 anos, desde que não possua impedimentos legais para isso. O que está implícito neste artigo é a possibilidade de qualquer cidadão português que reúna as condições descritas poder chegar ao cargo de chefe de Estado. Primeira suspensão da descrença: a possibilidade está lá e é bom que exista e que se a possa garantir; mas a probabilidade de facto de um qualquer cidadão anónimo chegar ao cargo de chefe de Estado é reduzidíssima, mesmo que para isso tenha conseguido reunir as 7.500 assinaturas de eleitores que a lei prevê como número mínimo. A eleição presidencial pede sempre uma máquina eleitoral cara; são de facto os partidos políticos que, ao apoiarem determinado cidadão, oferecem as condições necessárias para a sua candidatura, por mais apoios privados ou fortuna pessoal que o candidato possua. O que naturalmente torna o candidato ao cargo mais elevado do país refém de ideologias e eleitorados de quem o apoiou. O que nos leva à segunda falácia, utilizada indistintamente por todos os presidentes eleitos em democracia após terem vencido as eleições: “Sou e serei o presidente de todos os portugueses”. Embora para efeitos legais e práticos isso passe a ser verdade durante o mandato, o presidente é dos portugueses que o elegeram. Os outros – os que votaram noutro candidato ou se abstiveram – ou não se revêm no chefe de Estado ou pouco lhes importa.
Quem quiser acreditar que o cargo de chefe de Estado no sistema presidencial é acessível a qualquer um e que depois de eleito passa a ser uma figura transversal e amada e respeitada por todos está em plena suspensão da descrença. Se quisermos uma das grandes vantagens das monarquias podemos começar por aqui mesmo: o Rei é uma figura perene, preparada e conhecida por todos para assumir o seu papel. Assim como é conhecido quem o sucede. Mais importante ainda - e naturalmente refiro-me sempre às monarquias constitucionais – o Rei é independente, suprapartidário e supra-ideológico, limitado apenas pela lei fundamental do seu país aprovada que define o seu papel e poder na vida pública e política.
O primeiro presidente e a origem do semipresidencialismo
A história do sistema presidencial português é longa e por vezes sinuosa. Logo depois da Revolução Republicana, o primeiro presidente da autoproclamada República Portuguesa - Manuel de Arriaga – foi eleito colegialmente pela recém-formada Assembleia Nacional Constituinte – que por sua vez foi eleita por sufrágio directo (mas não universal) e em apenas metade dos círculos eleitorais. Como em determinadas circunscrições havia mais lugares por preencher do que candidatos, os vencedores eram proclamados eleitos sem votação… Para além de ter aumentado a incapacidade eleitoral dos cidadãos em relação ao que havia em monarquia, a república rejeitou o sufrágio universal interditando o voto às mulheres, analfabetos e uma parte dos militares. Sidónio Pais ainda tentou, em 1918, devolver o voto aos cidadãos masculinos com idade acima dos 21 anos. Mas a história foi a que se soube e as incapacidades repostas no ano seguinte. Coisas da ética republicana.
A Revolução de Maio de 1926 e o Estado Novo a que veio dar lugar relegou a escolha do chefe de Estado a uma farsa que esvaziou do cargo toda a réstia possível de dignidade, com eleições manipuladas e com os candidatos que se opunham ao regime a serem perseguidos ou ameaçados.
Com o advento da democracia, e depois de passadas as tribulações que todas as revoluções trazem agarradas, o general Ramalho Eanes torna-se o primeiro presidente a ser eleito em sufrágio directo e universal em 1976 e já sob a nova constituição aprovada uns meses antes. Eanes inaugura também o sistema semipresidencial português, ainda hoje em vigor.
É um híbrido político estranho, este sistema. O seu embrião terá surgido na República de Weimar alemã (1919-1933). Um sistema praticamente forçado pelas potências aliadas que tinham vencido a Alemanha na I Grande Guerra, em que os políticos eram dependendo das diferentes concepções adoptadas.
No semipresidencialismo o chefe de Estado tem poderes executivos, como o de voto ou o da dissolução da Assembleia da República – o que pode ser uma maneira de contornar a impossibilidade directa de demitir o governo.
Portugal partilha o chamado sistema premier-président com vários países, desde a França ao Madagáscar passando pelo Burkina-Faso. Não está consagrado em nenhum artigo constitucional. O sistema não está explicitado e é justificado pela prática política. Assim como a divisão de poderes. Extraordinário, quando existe uma alínea, a b), do artigo 288º da Constituição portuguesa) sobre a revisão constitucional que apenas admite de forma clara os limites materiais da revisão da constituição se for respeitada a natureza específica do regime republicano. Mas isso já os monárquicos sabem há muito e contra isso lutam há muito tempo.
As debilidades deste tipo de regime são óbvias e têm-se feito sentir por vezes de forma clara e tensa. A instabilidade política que advém de uma situação de coabitação – que acontece quando o chefe de Estado é eleito com o apoio de forças políticas adversárias das que formam o executivo – é recorrente na história da democracia portuguesa. Recorde-se os casos de Eanes com Soares e do presidente Soares com Cavaco Silva, para não ser exaustivo. O sistema semipresidencial reforça a fragilidade que é ter um chefe de Estado refém de ideologias e outros interesses partidários ou não. Mais uma vez, a ideia do mero árbitro ou moderador é uma suspensão da descrença. Como muitas vezes pode acontecer que seja o próprio governo a pressionar o chefe de Estado para aprovar determinados pontos fracturantes da agenda que defende.
Não sendo republicano, estranho este sistema falaciosamente montado para garantir um equilíbrio e cooperação entre órgãos de soberania. Está viciado à partida pelo facto aqui reiterado e nada despiciendo da falsa independência do chefe de Estado.
Só o Rei consegue garantir a estabilidade e a real distância dos interesses partidários e outros que cercam todos os presidentes da república. O Rei é livre, já se gritou em Almacave. Que se continue a viver num regime que promove a ilusão de liberdade é algo que é nossa responsabilidade combater e denunciar.
As eleições presidenciais que terão lugar daqui a poucos dias constituem mais uma oportunidade para os monárquicos dissecarem o nosso sistema semipresidencialista, apontarem as suas fragilidades e contradições e recordarem publicamente outros modelos, vigentes em destinos mais bem-sucedidos que o nosso.
O tema também interessa aos simpatizantes realistas que – imbuídos dum cândido pragmatismo - entendem que a sua participação cívica na eleição presidencial é útil numa perspectiva de "gestão do mal menor". Quase sempre os encontramos desiludidos, a cada final de mandato, com a intervenção política do "seu" presidente. Esperam (sempre debalde) que este, legitimado pela eleição directa, faça oposição ao governo assumindo conflitos institucionais com o parlamento e que rejeite com galhardia as leis por este emanadas de que não gostam.
A questão que a todos deveria inquietar é a de saber o que se pretende com o cargo de “mais alto magistrado da nação”. Este deve ser um elemento de aglutinação e de unidade, dotado de poder equidistante de moderação para a promoção de equilíbrios, tendo em vista o longo prazo e os valores perenes da nação, ou um participante activo na contenda sectária e permanente dos interesses e das facções que inevitavelmente existem onde haja mais do que uma pessoa? Pretende-se um Chefe de Estado que se assuma reserva da nação, com contenção, equidistância e sobriedade, ou mais uma voz a somar-se à berraria que emana da disputa partidária e ideológica?
Convém lembrar aos realistas pretensamente realistas que a Coroa viável nos nossos dias — aquela que, afinal, impera nos países mais evoluídos da Europa — é uma instituição politicamente abrangente e aglutinadora: não estigmatiza convicções, credos ou clubes. O respeito pelas diferenças e a capacidade de inclusão são, por via disso, dos argumentos mais valiosos da solução política preconizada pelos monárquicos. Nas dez monarquias constitucionais europeias - Bélgica, Dinamarca, Espanha, Liechtenstein, Luxemburgo, Holanda, Mónaco, Reino Unido e Suécia - os seus monarcas - Filipe, Margarida II, Filipe VI, Hans-Adam II, Henrique, Guilherme Alexandre, Alberto II, Isabel II e Carlos XVI Gustavo - não se envolvem no dia-a-dia da governança. Todos estes Estados são dotados de fortes tradições parlamentares e muito desenvolvidos.
Pela minha parte, e porque gosto de política, assistirei divertido ao espectáculo das presidenciais de 2021, na certeza de que será digno da final de um campeonato de wrestling. Um dia, o seu vencedor irá instalar-se no Palácio de Belém com a árdua tarefa de fingir que representa todos os Portugueses. Mas, no momento de preencher o boletim de voto, não deixarei de o anular. Será essa a expressão do meu repúdio pela mascarada que nos foi imposta à força.
A Real Associação de Lisboa é uma estrutura regional integrante da Causa Real, o movimento monárquico de âmbito nacional. Esta é uma associação que visa a divulgação, promoção e defesa da monarquia e da Instituição Real corporizada na Coroa Portuguesa, cujos direitos dinásticos estão na pessoa do Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança e em quem legitimamente lhe vier a suceder. Cabe a esta associação a prossecução de iniciativas e de projectos de interesse cultural, social, assistencial e de solidariedade que visem a dignificação, a valorização e o desenvolvimento dos seus associados e da comunidade em que se insere.