O que é que os romanos fizeram por nós?
Reg, líder de um grupo de rebeldes palestinos muito mais desajeitado do que verdadeiramente subversivo, faz esta pergunta para exaltar os ânimos contra os conquistadores romanos, esperando obter como resposta um imediato, inequívoco e sonoro «Nada!», mas tal não aconteceu. Apesar da militância, as dúvidas e sugestões da assistência sucedem-se a um ritmo tal que o pobre Reg vê-se na necessidade de reformular a pergunta: «para além do saneamento, da medicina, da educação, do vinho, da ordem pública, da irrigação, das estradas, do sistema de água potável e da saúde pública, o que é os romanos fizeram por nós?» E, mesmo assim, há ainda quem lhe responda «trouxeram-nos a paz».
Aquela pergunta, excerto de um diálogo delirante do filme A vida de Brian, ecoou na minha cabeça ao ouvir uma guia do Kunsthistorisches Museum de Viena denegrir os Habsburgos em bloco depois de quase duas horas de imersão numa das mais belas colecções de arte do mundo, que se deve na sua esmagadora maioria à família imperial austríaca que a colocou à disposição da população em 1891. Se a jovem activista disfarçada de especialista em História de Arte colocasse a mesma questão a si própria, e olhasse em volta, talvez descobrisse com o mesmo grau de estupefacção de Reg que, afinal, muito na Áustria lhes é devido, sobretudo naquele que era o seu local de trabalho.
Um passeio casual pelo centro de Viena grita Habsburgo em cada esquina e, à medida que nos adentramos nos espaços mais simbólicos, é quase palpável a sensação de que o imperador está para chegar. A Viena da República austríaca, que, à imagem da minha guia desnorteada, faz de conta que o seu passado não está intimamente ligado a uma família, na verdade vive dele e explora-o quase até à saturação. A Viena melodiosa, plúrima e aberta do princípio do século XX deu lugar a um cenário em que abundam os figurantes, mas em que faltam os actores principais. Há como que uma suspensão do tempo, um interlúdio de ausência, uma pausa vazia e poeirenta, que só pode ter sentido se for finalmente preenchida com a continuidade interrompida. Em suma, se a fotografia kitsch, de tão desfocada e retocada, der lugar ao filme em alta definição e o passado contribuir para revivificar o presente e projectar ambos para o futuro, tornando-os a todos mais autênticos.
A Áustria Habsburgo que era pluriétnica, plurilingue e multicultural - no verdadeiro sentido - deu lugar a um Estado reduzido à sua fracção alemã. Viena ainda resiste a aceitar essa condição territorial retraída e mostra a quem a visita como era e podia ter continuado a ser a capital de um império em que todos podiam caber. Depois de um último imperador que se sacrificou em favor da paz, tendo vivido os seus derradeiros e agónicos anos na Madeira, e que já foi elevado aos altares, a Áustria perdeu a oportunidade de ter como soberano o arquiduque Otto, um sábio cuja “austricidade”, profunda e plural, e o catolicismo que a animava o tornaram num dos primeiros denunciadores e principais combatentes do nazismo e num dos maiores promotores da unidade europeia. Depois de uma vida de serviço, em que foi quase tudo, Otto de Habsburgo repousa ao lado dos seus, na cripta dos Capuchinhos, mas doou o seu coração ao mosteiro húngaro de Pannonhalma. Mesmo na morte, a ideia da monarquia dual - KuK – recusa-se a desaparecer.
O leitor poderá perguntar-se a que se deve esta digressão por filmes cómicos e outras repúblicas infelizes se temos a nossa própria tragicomédia republicana. Na verdade, é idêntica a sensação de desolação, de ausência e de pausa, que perpassa os nossos espaços públicos, desabituados que estão a serem vividos para serem apenas frequentados, em particular aqueles em que são evocadas as figuras dos monarcas e em que a sua falta mais se faz sentir. A resposta é que pretendia preparar uma pergunta. Uma pergunta a que os portugueses deveriam ser capazes de responder: «O que é que os nossos reis fizeram por nós?».
A resposta é simples. Está espalhada nas cidades, vilas e aldeias, lugares e caminhos, está esculpida nas pedras, está inscrita nos costumes, está alinhada nas rimas, está misturada nos sabores, está implantada nas melodias, está assinalada nos ritos, está delimitada nas fronteiras conquistadas, está embebida no mar que não acaba, está enraizada nos corações e é sementeira de futuro. Aquilo que os nossos reis fizeram por nós foi um país e aquilo que, em conjunto, nos demos mutuamente foi uma pátria que, sendo nação, é aberta ao mundo.
Os nossos reis confundem-se de tal modo com a nossa essência que, três repúblicas depois, não somos capazes de prescindir da sua principal marca heráldica como forma de nos identificarmos colectivamente. Onde estiverem as quinas, aí estará um português. A pergunta que sobra é portanto esta «O que é que devemos fazer pelos nossos reis?»
João Vacas in Correio Real nº 20