Entrevista a José Cid - Correio Real nº 15
A propósito da feliz notícia da consagração do nosso correligionário José Cid com um Grammy “Prémio de Excelência Musical”, é com enorme alegria que recuperamos uma entrevista feita para o Correio Real em Mogofores na primavera de 2017.
José Cid dispensa grandes apresentações. Com uma carreira musical multifacetada, que vai do Fado, passando pelas baladas, à mais pura música Pop passando pelo Rock Sinfónico, este conceituado músico nascido na Chamusca em 1942 é representativo da diversidade do universo de monárquicos que somos todos nós. Cheguei à sua quinta em Mogofores depois de um almoço na Malaposta em Anadia gentilmente oferecido pelo casal José Cid e Gabriela Carrascalão, repasto que proporcionou uma amena conversa, que foi como um belo preâmbulo à nossa entrevista. Certo é que, talvez por ser monárquico, certamente consequência sua educação esmerada, o José Cid trata os seus convidados como príncipes, e foi como se eu tivera tal estatuto que me recebeu na sua casa e me mostrou a quinta de que tanto se orgulha, os seus cavalos e o sofisticado estúdio de gravação no último andar da casa fidalga do século XIX. Se o propósito da minha viagem ao Norte era entrevistar o cantor compositor José Cid como monárquico que sempre foi, muito bem impressionado fiquei com a profusa “iconografia” que se espalhava pela casa, reveladora dos valores que defende: as armas reais aqui, uma bandeira azul e branca ali, ou um retrato dos Duques de Bragança destacado numa bela moldura na sala de estar – decisivamente estava num ambiente civilizado e salubre. Foi numa tarde amena, no jardim junto a uma piscina de onde se vislumbravam por detrás de uma sebe as duas éguas de eleição do cantor que iniciámos a nossa conversa:
CR - Foi da sua família que herdou a sua veia musical? Tinha um ambiente musical em casa dos seus pais?
José Cid - Sim, sem dúvida. Não dos meus pais, mas do meu avô paterno Manuel Luís Ferreira Tavares com quem vivi no Ribatejo, na Chamusca até aos meus onze anitos. Era guitarrista em Coimbra na época do Hilário. Dirigiu a Tuna, sabia música e tinha uma intuição musical muito grande. Foi ele que me ensinou a tentar tocar com a mão esquerda, porque eu em pequenito só tocava com a mão direita. Portanto a minha veia musical vem da parte da minha família Ferreira Tavares, originária de Albergaria.
CR - E tocavam em casa?
José Cid - O meu avô tocava piano e também a minha tia, Rosa Galar da Fonseca, tocava piano. E eu comecei logo a tocar piano e a cantar, em pequenito. Num piano velhote que havia no Ribatejo lá no sótão, na casa da costura. Tocava, tocava, tocava e cantava e as pessoas ficavam muito espantadas e perguntavam aos meus pais: “mas quem é que o ensinou a tocar e a cantar?” e os meus pais disseram: “Ninguém! Nem professor tem! Não tem nada!”. Foi então que me começaram a chamar “menino prodígio”, que é o titulo do meu último álbum.
CR - Em que ponto da sua vida é decidiu que ia viver para a música?
José Cid - Isso foi desde sempre. Comecei por cantar fado no Ribatejo e depois outros géneros musicais, quando entrei no colégio Camões em Coimbra, aos treze ou catorze anos. Arranjei uns amigos que tocavam também, juntávamo-nos para tocar quando podíamos, a seguir às refeições, ao almoço e ao jantar. Foi então que formámos uma banda: “Os Babies”, que foi provavelmente a primeira banda de Rock and roll de Portugal, em 1956. Depois veio a proibição dos meus pais, em conivência com o director do colégio Camões, que não queriam que eu fosse cantar para as festas universitárias. Eu, como tinha a sorte de dormir num quarto rés-do-chão, saltava pela janela e ia para lá tocar com os meus amigos.
CR – Portanto não tinha apoio em casa…
- Nenhum mesmo. Até menti à minha mãe (e claro que depois fui apanhado), dizendo que o dinheiro que ganhávamos era para as conferências de São Vicente Paulo, e aí a minha mãe já deixou. Era mentira. O certo é que depois fizemos muitos mais concertos solidários com muitas entidades religiosas, portanto redimimo-nos dessas mentiras mais tarde.
CR - A sua assumida costela monárquica tem origem cultural, familiar ou foi uma opção política racional?
José Cid - A última opção é a mais certa porque eu até já passei por uma tentação republicana, sabe? Mas depois percebi que os sistemas menos corruptos, com maior defesa dos valores da cultura, com mais igualdade de oportunidade para as pessoas, com melhor nível de vida e com maior apoio na saúde e na educação são monarquias. E como não são repúblicas, eu optei por pensar num sistema que fosse mais perfeito, um sistema mais próximo do povo, que não abusasse da ideia de povo. Esta coisa do “povo é quem mais ordena” e depois o povo passar fome, não me parece uma boa ideia, percebe? Eu gosto mais dum “povo que mais ordenha”, que tem cães, tem vacas, tem cabras, tem bens pessoais e vive melhor. É melhor assim. E eu acabei por idealizar, por conceber para Portugal um sistema que fosse mais justo, um sistema com provas dadas nas monarquias do norte da Europa, mais civilizadas sem dúvida nenhuma.
CR - O tempo confirmou algumas das suas composições como verdadeiros clássicos da música popular portuguesa. Após terminar o processo de composição, alguma vez lhe passava pela cabeça que estava a mudar a história, que tinha criado uma peça decisiva?
José Cid - Não tinha isso em mente, mas atenção: eu não pus um ponto final na minha criatividade! Neste momento tenho um álbum novo quase pronto, que eu adoro, que se chama: “O Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid” em que eu estou a cantar como se tivesse trinta aninhos. E tenho ainda outro disco feito, muito diferente, que se chama “Fados, Fandangos, Viras e Malhões”, e depois quero terminar a carreira com um último álbum que se chamará “Vozes do Além” em que retorno ao Rock sinfónico, com poesias de Lorca, de Sophia de Mello Breyner, de Natália Correia, que poeticamente espero seja o álbum mais poderoso de todos os álbuns sinfónicos que alguma vez fiz. Já está escrito, só que ainda não o comecei a gravar. O dos “Corações solitários” já está pronto, vai sair. O “Fados, Fandangos, Viras e Malhões” já está meio gravado, e depois o outro, vai ter de ser produzido em 2018, 2019 se Deus me der vida e voz.
A maior parte das minhas músicas mais conhecidas e mais comercias foram feitas nos anos 70 em que nós tínhamos que pagar a renda da casa, a prestação do automóvel, as fraldas e os biberões para os nossos filhos e o grupo 1111 passa por essa fase quando nos tornámos mais comerciais...
CR - Mas não é qualquer um que faz uma música comercial como “Vinte anos”, “A rosa que te dei” ou “O dia em que o rei fez anos”.
José Cid - Eu sou um privilegiado nesse aspecto. E muito mais ficaria da minha obra se eu não tivesse um boicote sistemático da minha obra a partir dos anos 90. Se eu tivesse mais apoio da rádio e mais divulgação de muitos temas que eu escrevi e que vão ficar absolutamente esquecidos e postos de lado. Nas últimas décadas escrevi muitos outros temas bons que simplesmente não passaram na rádio.
CR - Que razões atribui a essa ostracização?
José Cid – Por causa da minha independência. Quando não me sentia bem numa editora saía amigavelmente e ia para outra, e algumas delas multinacionais que possivelmente não ficaram contentes com essa forma de estar. Não me senti bem em algumas editoras, por isso neste momento tenho a minha própria editora que se chama “Acid Records” que publicou já alguns álbuns notáveis, um deles do monárquico António Pelarigo, outro do Zé Perdigão e o meu, “O Menino Prodígio” que é nomeado o melhor álbum da música portuguesa em 2016 pela Sociedade Portuguesa de Autores. Também já publicámos recentemente um disco do Mário Mata que é republicano, mas começa a perceber que talvez se possa ter enganado, e outro do meu sobrinho Gonçalo Tavares que, como não poderia deixar de ser, é monárquico também. Portanto a “Acid Records” é uma espécie de “gueto” monárquico na música, em que eu sou o Capitão, mas rodeado de tenentes muito bons.
CR - Alguma vez sentiu que o facto de se ter assumido como monárquico lhe trazia alguns problemas na carreira?
José Cid – Não, porque na maior parte dos partidos políticos, particularmente da área do PSD e do CDS, há sempre muitos monárquico envergonhados e como eu também nunca me declarei anti-republicano... não sou republicano mas tenho a maior admiração pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa que de resto faz um papel perfeito dum Rei constitucional. Porque tem sentido de Estado e revela muita humanidade dentro dele, não olham para nós como se nós fossemos números dum Excel, que é uma coisa muito má na política, uma coisa que o sistema republicano tem trazido nos últimos anos. Eu já ouvi essa opinião por parte de um outro monárquico muito importante na república portuguesa que é o presidente do Governo Regional da Madeira, o Doutor Albuquerque.
CR – Sendo casado com Gabriela Carrascalão, que também é monárquica e que tem uma ligação ao povo timorense, como vê a contribuição do Duque de Bragança para a autodeterminação de Timor-Leste? Considera que essa mediação foi devidamente reconhecida pelas autoridades portuguesas?
José Cid - Algumas autoridades portuguesas, particularmente o Dr. Jorge Sampaio, foram extremamente injustos com ele em relação a Timor. O mesmo não aconteceu com Mário Soares que foi sempre muito educado com o Senhor Dom Duarte que hoje tem cidadania timorense. O Duque de Bragança é timorense e em conversa muitas vezes me disse a mim e à minha mulher Gabriela, de quem é extraordinariamente amigo, que se à época ele estivesse à frente do País nunca por nunca teria havido guerra civil e o morticínio que existiu em Timor. Nunca. Isso é porque os reis são vistos com uma independência do sistema político que por sua vez lhes proporciona uma outra perspectiva das coisas.
CR - Ainda persistem alguns estereótipos em relação aos monárquicos portugueses tidos como passadistas e saudosistas. O que é que podemos fazer para ultrapassar esses preconceitos?
José Cid - Esses monárquicos passadistas e saudosistas metade deles são muito também alpinistas sociais e eu aí sou completamente contra. O alpinismo social através da monarquia é, para mim, uma coisa completamente ridícula e que deveria ser ridicularizada. Num sistema monárquico actual, moderno, humanista as pessoas são o que são e não precisam de ser promovidas socialmente para serem mais do que são.
CR - Está em curso uma petição para garantir formalmente ao Duque de Bragança, como representante descendente dos reis de Portugal, um lugar adequado no protocolo de Estado como “Convidado Especial”. Concorda com esse reconhecimento?
José Cid – Completamente, porque o Senhor Dom Duarte é hoje uma pessoa que é importante na moralização do nosso país, é um grande português, o descendente dos Reis de Portugal, que por isso deveria ser objecto de outra consideração por parte do regime. O Dr. Jorge Sampaio, procedeu de uma forma muito injusta e isso trouxe algumas sequelas. Mas eu quero crer que o actual Primeiro-ministro e o actual Presidente da República são pessoas que percebem que é importante que se atribua à nossa família Real outra dignidade, outro protagonismo que lhe tem sido negado.
CR - Várias das suas canções contam histórias de Reis leais, ao lado do seu povo: “A Lenda do Rei D. Sebastião”, “O dia em que o Rei faz anos”. O seu pensamento político influenciou de alguma maneira a letra destas canções?
José Cid - Também, muito. Mas note que no meu próximo álbum eu tenho um tema que se chama “Saudades de Botequim” * em que diz que “Se viesse um Rei talvez fosse melhor porque ia impor a lei das sesmarias”, a propósito do nosso País em que metade do território está abandonado agricolamente. Quando há tanto desemprego, poderia pensar-se num Portugal que, com o clima que tem, com a água que tem, com os terrenos que tem, podia dar de comer a muito mais gente que está na miséria.
CR - Ao longo da sua carreira foi incorporando a história de Portugal nas suas composições. Como vê a consciência histórica actual dos portugueses? A culpa é só do ensino?
José Cid - É um problema cultural, completamente cultural. Por acaso a nossa vizinha Espanha, com as crises e com os problemas que tem de nacionalidades, nesse aspecto, ostenta uma defesa muito maior do seu património cultural. Eu acho até que os espanhóis até protegem o que é mau deles, enquanto que nós muitas vezes ostracizamos o que é bom em Portugal. E isso é uma má atitude política.
CR - Como entende que a restauração da monarquia em Portugal, exemplo das mais desenvolvidas nações europeias, poderia melhorar a vida dos portugueses?
José Cid - Eu acho que o facto da nossa Constituição não permitir uma alternativa monárquica representa um complexo enorme dos republicanos em relação à monarquia. Porque o sistema republicano começa a perceber que os países monárquicos do mundo – e volto a repetir - são menos corruptos, mais desenvolvidos e mais democráticos. Nós devíamos combinar um sistema desses com a vantagem de termos tanto sol, o fado, o fandango e os viras...
CR - Quais são os seus projectos artísticos do futuro? Está nos seus planos a remasterização e a reedição da sua discografia?
Não estou muito preocupado com isso. Penso fazer uma fundação José Cid, em que depois a Gabriela, que é um pouco mais nova do que eu e o meu sobrinho Gonçalo Tavares poderão gerir a minha discografia separando as coisas. Porque eu tenho uma grande mistura de estilos, há uma grande confusão na minha obra, é muito camaleónica, e portanto vão ter que separar José Cid e os poetas, isto é, José Cid cantando Gabriela Mistral ou cantando Lorca ou cantando Sophia de Mello Breyner ou cantando Teixeira de Pascoaes ou Júlio de Castro. Separando o José Cid só baladas, José Cid só canções de amor, José Cid canções de intervenção, José Cid rock sinfónico, o José Cid o fado, porque apesar de eu ser um fadista amador, sou muito amigo de grandes fadistas profissionais como o Camané, o João Ferreira Rosa, o António Pelarigo, o Zé Gonzalez são pessoas que me apoiam muito quando me ouvem cantar fado. Eu canto fado desde sempre, não é por oportunismo ou porque esteja na moda. Portanto isso é uma coisa para futuro e neste momento estou preocupado com o meu próximo álbum, “Clube dos Corações Solitários do Capitão Cid”, com o outro álbum que vem a seguir, “Vozes do Além”, que ainda não está gravado, que é rock sinfónico e outro álbum que está praticamente pronto que se chama “Fados, Fandangos, Viras e Malhões”. Para já, acho que quando chegar aos 80 anos isto estará tudo pronto e será a altura de parar de gravar e então gerir a minha decadência.
In Correio Real nº 15
Entrevista Coordenada por João Távora,
Mogofores, 06 de Abril de 2017